Mundial de surfe: tri de Gabriel Medina inaugura novo formato na WSL

Em uma conversa exclusiva, Ivan Martinho, CEO Latam da WSL, fala sobre o modelo de negócio e os novos rumos do mundial de surfe.


Por Bruno A. Matos

23 de setembro de 2021

Setembro de 2021 ficou marcado pelo fim de mais uma temporada do circuito mundial de surfe da World Surf League. Mais do que isso, foi a primeira vez que a WSL teve certeza que teria seus campeões coroados dentro d’água. Foi através do novo formato, conhecido como “WSL Finals”, que Gabriel Medina superou Filipe Toledo, e venceu o seu terceiro título mundial, no evento de surfe mais assistido de todos os tempos. Tudo isso no ano de estréia do esporte nas Olimpíadas.

A temporada de 2021 também selou por completo a dominância da “Brazilian Storm”, onda de títulos e vitórias de atletas brasileiros que mudaram a cara do surfe no mundo e que vem crescendo desde 2014, ano do primeiro título de Medina. No Championship Tour masculino, Ítalo Ferreira completou um pódio 100% brasileiro, com o terceiro lugar. No feminino, Tatiana Weston-Webb garantiu o vice-campeonato para o Brasil.

Este artigo ilustra o cenário geral da liga, com destaque para o seu modelo de negócios de sucesso e a dominância do Brasil no esporte. Tive a oportunidade de ter uma excelente conversa com o CEO Latam da WSL, Ivan Martinho, que contribuiu com sua visão sobre o modelo de negócios e o futuro da liga.

Surfe pelo conteúdo por aqui:

O que é a WSL?

A World Surf League, popularmente conhecida como WSL, é a “casa global do surfe”. A organização tem sua sede em Santa Monica, na Califórnia, além de outros escritórios regionais espalhados pelo mundo. A liga é composta por “Tours e Eventos”, que englobam todas as modalidades do esporte, e coroa o campeão mundial de cada divisão.

História do circuito mundial de surfe

“A WSL é uma marca recente, mas ela existe como instituição esportiva desde 1976.” — Ivan Martinho, CEO Latam WSL.

Originalmente as competições de surfe eram eventos promovidos pelas empresas de surfwear mundo a fora como meio de ativação de marcas como a Quiksilver. A partir da realização desses eventos independentes, surgiu a necessidade de se criar uma associação que pudesse representar a organização dos campeonatos e a participação dos diversos atletas, além de cuidar das datas e locais onde seriam realizados esses campeonatos. Fundado por Fred Hemmings e Randy Rarick, o International Professional Surfers (IPS) foi o primeiro corpo administrativo do surfe profissional. Os eventos independentes tomaram forma de circuito, e em 1983, a IPS se tornou uma associação, sob um novo nome: Association of Surfing Professionals (ASP). E assim se manteve até 2015.

Antes da mudança mais recente, de ASP para WSL, a estrutura societária da liga era composta 50% por surfistas profissionais e 50% por marcas organizadoras dos eventos, entre elas a Billabong, Quiksilver e Rip Curl. Em um cenário de rápida evolução do esporte e sua complexidade, a ZoSea, formada por um grupo de investidores liderado por Paul Speaker, ex-executivo da Quiksilver, e Terry Hardy, gestor de carreira do multicampeão Kelly Slater, conseguiu fechar um acordo para assumir o controle de todos os eventos, e centralizou a liga. A ASP não podia mais ser um “side-business” daquelas marcas. O modelo de negócios e a oportunidade chamaram atenção de Dirk Ziff, bilionário norte-americano que investiu alguns milhões de dólares na ASP. Nessa mesma época, Speaker assumiria como CEO. Em 2015, após passar por um processo de rebranding, a ASP passou a se chamar WSL, marca que viria a se tornar, alguns anos depois, conhecida em todo o mundo.

Dirk Ziff

Modelo de negócios

Não é nada incomum ver ligas esportivas nascendo com inspirações em modelos de sucesso passados, como foi o caso da Premier League com a NFL, por exemplo. A WSL, porém, é caracterizada por um modelo de negócios que pode ser chamado de único.

Como referências, Ivan Martinho, principal executivo da WSL na América Latina, cita o UFC e o ATP: “O modelo de negócios não é inspirado, mas se assemelha, de certa forma, ao que seria o UFC antes de ser vendido para a IMG. Eram eventos produzidos por investidores, que mantinham exclusividade sobre os atletas da competição. Do ponto de vista esportivo, se assemelha mais à ATP, de tênis. Temos a nossa qualificação: pro-junior, depois Qualifying Series (QS), QS1000, QS3000, QS5000, seguido do Challenger Series (CS), e por último o Championship Tour (CT). Tudo isso com uma lógica de ranqueamento esportivo. Mas voltando ao ponto de vista de negócios, a ATP é uma associação, a WSL é uma liga.”

Os 4 pilares da WSL

“O propósito da liga é transformar o mundo a partir da força aspiracional do surfe. A partir daí, o posicionamento da nossa marca está apoiado em quatro pilares…” — Ivan Martinho, CEO Latam WSL.

  • Performance
  • Sustentabilidade
  • Igualdade
  • Lifestyle

Performance

O primeiro pilar, performance, fala por si só. O Championship Tour coroa o campeão mundial, promovendo a competição de mais alto nível do surfe profissional. São as melhores ondas e os melhores atletas.

Sustentabilidade

O foco em sustentabilidade é uma das características mais reconhecidas da World Surf League. O esporte acontece nos oceanos, portanto a liga entende que deve ter a legitimidade e obrigação de cuidar disso. Uma das principais iniciativas da área é a PURE, ONG que nasceu dentro da WSL, que tem o objetivo de conscientizar e educar sobre sustentabilidade, com foco em salvar os oceanos do planeta.

Igualdade

A WSL premia os seus atletas masculinos e femininos de maneira idêntica, com os mesmos valores de prêmios para ambas as categorias desde 2019, sendo a pioneira entre ligas esportivas globais dos Estados Unidos, e uma das primeiras em todo o mundo, a estabelecer a igualdade das premiações.

Lifestyle

Música, moda, viagens e tudo que se refere ao lifestyle único do surfe é explorado pela liga. A linguagem e apresentação dos broadcasts de eventos, e a própria lógica de eventos espalhados por todo o mundo, são bons exemplos do uso desse pilar.

Marcas e patrocinadores da WSL

“É sob esses pilares que nos posicionamos como liga, gerando histórias para ganhar legitimidade dentro de cada um desses quatro pilares. A partir disso, criamos a oportunidade de atrair a atenção, não somente das marcas que chamamos de endêmicas, que sempre estiveram conosco. Afinal, eram as antigas donas da liga. Deixaram de ser donas e passaram a ser patrocinadoras de nossos eventos. (…) Conseguimos continuar tendo um produto relevante para manter a atenção dessas marcas, mas também conquistar outras não-endêmicas.”

Alguns parceiros da WSL:

  • Anheuser-Busch
  • Red Bull
  • Jeep
  • Quiksilver
  • Roxy
  • Rip Curl
  • Billabong
  • Vans
  • Boost Mobile
  • Hydro Flask
  • MEO
  • Woolmark
  • Swatch
  • Barefoot
  • Jose Cuervo
  • Polo Blue
  • TropicSport
  • Corona
  • Oi
  • Localiza
  • Havaianas

Sem bilheteria, de onde vem a receita da WSL?

Estamos acostumados a ver bilheteria e programas de benefícios na compra de ingressos, como o sócio-torcedor ou o season ticket, sempre entre as principais linhas de receita de ligas e clubes. No mundo do surfe, por outro lado, não existe essa frente.

“Essa é uma condição do nosso esporte. Uma condição que está posta, então trabalhamos com ela. O que fazemos, obviamente, é maximizar todas as outras receitas na medida do possível. Direitos de transmissão, patrocínios, licenciamento, hospitalidade… Já estamos acostumados a trabalhar com eventos ‘broadcast only’, sem ter a receita do match day. Temos relevância para vender os direitos de transmissão (…) e nossos acordos permitem que a gente trabalhe essas transmissões nas nossas plataformas proprietárias, como site e app.” afirma Martinho.

A WSL é a terceira liga com maior engajamento social com mais de 13M de seguidores nas redes sociais da marca, além de outros 36M no agregado de seus atletas.

WSL Finals: o novo formato do campeonato mundial de surfe

Até 2019, o CT contava com um modelo de competição de pontos corridos: o campeão era aquele que acumulava o maior número de pontos ao longo de cada uma das etapas do circuito na temporada, similar ao modelo da competição de pilotos na Fórmula 1, onde o vencedor da etapa leva o maior número de pontos e esse valor decresce conforme a colocação final piora.

No ano de 2021 foi implantado o formato de “WSL Finals”. O ranqueamento por pontos corridos se mantém, o que muda é como é definido o campeão. Tanto para a categoria masculina, quanto para a feminina, o top-5 do ranking ao final da temporada participa de “playoffs”. Quanto mais alta a colocação no ranking, maior a vantagem. Fazendo um paralelo com o video-game, é como se os surfistas batalhassem para passar de fase até chegarem à disputa mais difícil, ao nível mais alto, os adversários mais bem preparados. Cada fase é composta de uma bateria, onde o vencedor leva a melhor. Com exceção da última fase, que é uma série de melhor de três baterias. O 5º enfrenta o 4˚, para decidir quem enfrentará o 3˚, para decidir quem enfrentará o 2˚, para decidir a grande final.

WSL Finals Bracket design — World Surf League

“Temos feito diversas transformações na liga. Primeiro nos locais dos eventos, depois no formato e assim por diante. E isso exige coragem dos executivos, porque toda vez que você faz uma mudança estrutural, elas nunca são unânimes. Sobretudo pelos apaixonados pelo esporte. Encaramos muito, por exemplo, a crítica de que esse modelo novo poderia não ser justo esportivamente. (…) No fundo o nosso trabalho é desenvolver o surfe como plataforma e como esporte. (…) Inovar e tentar formatos novos é o nosso dia a dia, se fizermos mais do mesmo, não vamos crescer.

A inspiração para esse formato surgiu lá em 2019, com o formato de pontos corridos, quando, por uma coincidência, Ítalo Ferreira e Gabriel Medina se enfrentaram para decidir o título mundial. E até então aquela tinha sido a bateria de surfe mais assistida da história. Mas aquilo foi uma coincidência, o campeonato sendo decidido na última bateria. Por outro lado, naquele mesmo ano, no feminino, a Carissa (Moore) estava no vestiário quando foi avisada que ganhou (o título mundial). A imagem dela ganhando é ela sendo avisada pelo Barton Lynch dentro do vestiário.

A premissa, então, era: criar uma lógica de coroar os surfistas campeões saindo da água. Isso traz emoção, audiência, e uma provável audiência nova. Essa era a expectativa. A partir daí, foram discutidos inúmeros modelos até chegarmos ao modelo do Finals. E sabemos agora que é um modelo que veio para ficar. (…) Foi o dia de surfe mais assistido na história, não só em número de pessoas, mas também em ATS (average time spent).”

Brasil no mundial de surfe

Até 2014 o Brasil não tinha nenhum título mundial de surfe. De lá para cá, foram 5 conquistas por 3 atletas — e ainda podemos ressaltar que, por conta da pandemia, não existiu um campeão em 2020. O Brasil também é o país com mais surfistas no CT masculino, com 13 atletas, e mais duas no feminino. Isso tudo sem falar da medalha de ouro nas Olimpíadas de Tóquio, na primeira participação do esporte nos Jogos.

Surfistas brasileiros no WSL Championship Tour 2021:

  • Gabriel Medina
  • Ítalo Ferreira
  • Filipe Toledo
  • Yago Dora
  • Deivid Silva
  • Adriano de Souza
  • Jadson André
  • Miguel Pupo
  • Caio Ibelli
  • Peterson Crisanto
  • Alex Ribeiro
  • Matheus Herdy
  • Lucas Vicente
  • Tatiana Weston-Webb
  • Silvana Lima

“O número grande de praticantes no país, junto da possiblidade de seguir a carreira profissional. (…) O suporte dado à geração anterior de atletas foi capaz de fazer com que os profissionais de hoje tivessem a capacidade de dedicar as suas vidas à carreira profissional de surfe. Quanto mais essa inspiração se cria, sobre o Gabriel (Medina) ou sobre a Tati (Weston-Webb), mais se cria a expectativa de ‘quem é o próximo?’. E se existe essa expectativa, essas referências, eu como marca ou apoiador, posso olhar para isso como um investimento de longo prazo. Criar a referência que vai substituir o campeão que atua hoje.” comenta Ivan.

Cultura acima de tudo

Está claro que a WSL já é uma das grandes referências da indústria esportiva mundial. É uma marca global e especialista em gerar valor para seus stakeholders e parceiros. E, diferentemente de grandes ligas “business first”, como a NFL, a World Surf League moldou a sua própria maneira de fazer negócios. Pensando sempre na essência do esporte que governa, e se apoiando em seus ideais bem definidos. É o modelo “culture first”, o grande responsável pelo impulsionamento o crescimento da liga mundial de surfe.