O Brasil deixou de ser apenas uma tempestade no surfe para se tornar uma potência mundial. Nas últimas 10 temporadas da World Surf League (WSL), 7 títulos foram conquistados por surfistas brasileiros. O primeiro a alcançar o topo foi Gabriel Medina em 2014. Ele ainda voltaria a vencer em 2018 e 2021, tornando-se o maior campeão do país na modalidade. Depois foi a vez de Adriano de Souza, em 2015, Ítalo Ferreira, em 2019, e Filipe Toledo, que fez história ao conquistar o bicampeonato consecutivo em 2022 e 2023, sendo o único sul-americano a alcançar esse feito.
Chegando em 2025, o cenário não é diferente. Em uma temporada dominada por brasileiros – sendo 10 homens e 2 mulheres entre os melhores do mundo – Ítalo Ferreira lidera o circuito mundial com 29.960 pontos, 8 mil a mais que o segundo colocado Ethan Ewing. Yago Dora e Miguel Pupo também compõem o Top-10 e podem surpreender nas próximas etapas, evidenciando a força do Brasil na modalidade. Já na divisão feminina, Luana Silva é a única em atividade. Em março, a medalhista olímpica Tatiana Weston-Webb anunciou uma pausa na carreira para tratar da saúde mental.
“O sucesso da Brazilian Storm foi transformador para a WSL. Gabriel [Medina], Ítalo [Ferreira], Tati [Weston-Webb] e Filipe [Toledo] não só elevaram o nível do esporte, como também despertaram um orgulho nacional que ampliou nossa base de fãs, impulsionou audiências e abriu portas para que pudéssemos contar novas histórias, ocupar espaço e atrair novos patrocinadores. Hoje, o surfe virou conversa de bar, de escola, e de escritório”, afirma Ivan Martinho, CEO DA WSL América Latina, em entrevista exclusiva para o Sport Insider.
O legado da Brazilian Storm

A essência do surfe vai muito mais além da competição. Envolve camaradagem, lifestyle e a profunda conexão do surfista com a natureza e, em particular, com o oceano. Por isso que a comunidade é muito unida, pois todos os praticantes acabam se tornando uma só família, e às vezes, compartilham até do mesmo sangue. Em 2011, por exemplo, um grupo de jovens brasileiros impressionou em Trestles, nos Estados Unidos. A competição era válida pelo WQS – divisão de acesso à elite -, e terminou com a vitória de Miguel Pupo, que venceu o californiano Tanner Gudaskas na grande final.
A partir desta conquista, a imprensa norte-americana deu o apelido “Brazilian Storm” para aquela geração, no qual os principais expoentes eram Gabriel Medina, Filipe Toledo, Jadson André, Wiggolly Dantas, Ítalo Ferreira e o próprio Miguel Pupo. Esse grupo cresceu, se expandiu e contribuiu para o surgimento de novos surfistas, como é o caso de Samuel Pupo, irmão do Miguel, que compete na WSL desde 2022. Outro legado de carne e osso é João Chianca, o Chumbinho.
A promessa de 24 anos faz parte de uma linhagem de atletas: o pai, Gustavo, foi o primeiro a se aventurar no esporte e também o pioneiro com o apelido de Chumbinho – referência ao desenho “Chumbinho e Bacamarte” por ser muito bagunceiro. Especialista em ondas grandes, o patriarca com o tempo virou Chumbão. O filho mais velho, Lucas, se tornou o Chumbo e também se dedicou às ondas grandes, e João, o mais novo, era o Chumbinho e trilhou um caminho diferente, em ondas menores, tornando-se uma das principais promessas da Liga Mundial de Surfe para o futuro.
No que diz respeito à divisão feminina, a principal esperança do Brasil no surfe vem do Havaí. Nascida e criada na ilha norte-americana, Luana Silva tem 20 anos, é filha de pais brasileiros e fala português com muito sotaque. Ela pode não ter um atleta famoso na família, mas contou com o apoio e conselhos de sua mentora Tatiana Weston-Webb para chegar a WSL com a bandeira brasileira em sua lycra. Inclusive, a participação de Luana nos Jogos Olímpicos de Paris só foi possível graças a Tati.
Eliminada precocemente do ISA Games 2024 – último evento pré-Olímpico da modalidade -, Luana Silva viu Tainá Hinckel avançar e obter a segunda vaga do Brasil para as Olimpíadas. Tatiana Weston-Webb já havia se garantido pelo desempenho na Liga Mundial de Surfe. Assim, para o Comitê Olímpico Brasileiro ter o direito de uma terceira cota, era necessário que Tati chegasse ao menos à final do pré-Olímpico. E foi isso que aconteceu, tornando possível a participação de sua pupila.
Hoje, vemos esse legado [da Brazilian Storm] se refletir na nova geração. Nomes como João Chianca, Samuel Pupo, Luana Silva, Laura Raupp e Ryan Kainalo são apenas alguns exemplos do potencial que temos na região. Fora do Brasil temos atletas como a Sol Aguirre, Daniella Rosas e Arena Vargas que estão liderando o surfe feminino no Peru. Tenho certeza que a América Latina vai continuar sendo protagonista no futuro do surfe mundial. O Brasil, em especial, é hoje uma potência não só em performance esportiva, mas também em termos de audiência, engajamento digital e oportunidades de negócio. O continente tem uma base de fãs apaixonada, jovens talentos surgindo a cada ano e marcas cada vez mais interessadas em se conectar com esse universo. Como liga, temos investido em novos formatos de conteúdo, em parcerias locais e em experiências de marca que levem o surfe para além da areia”, revela Martinho.
Saquarema: capital nacional do surfe

O mercado brasileiro sempre esteve no radar da WSL, bem antes até da Brazilian Storm virar uma febre. Tanto que, entre 1988 e 2016, a Barra da Tijuca foi palco de diversas etapas do Circuito Mundial de Surfe, testemunhando momentos memoráveis da modalidade, como da vez em que Kelly Slater realizou um tubo perfeito, que lhe rendeu uma nota 10 unânime dos juízes. A partir de 2017, a Barra deu lugar a Saquarema, que tornou-se a capital nacional do surfe brasileiro. Com a Praia de Itaúna sendo reconhecida por suas ondas consistentes e desafiadoras, o local tornou-se a primeira sede a receber as três etapas do circuito: Qualifying Series (Abril), Championship Tour (Junho) e Challenger Series (Outubro).
Em 2024, o impacto econômico do Championship Tour (CT), o principal campeonato masculino – foi de R$ 159 milhões. De acordo com o estudo promovido pela EY, a etapa recebeu cerca de 350 mil pessoas em 9 dias, ocupando 100% da rede hoteleira da cidade. E, agora, para 2025, a tendência é que esse sucesso se repita. A etapa acontecerá entre os dias 21 a 29 de junho e é vista por Ivan Martinho como o maior evento de surfe do mundo. Inclusive, o CEO da WSL afirmou que a Liga pretende ampliar a presença de torneios de alto nível na América Latina em breve.
“Saquarema é hoje uma etapa consolidada no Championship Tour. Há 3 anos, é o maior evento de surfe do mundo com excelente estrutura, alto nível técnico e uma torcida que faz a diferença. Nosso objetivo é, sim, ampliar a presença de eventos de alto nível na América Latina — seja com etapas do CT, seja com eventos do Challenger Series ou do QS. Os desafios envolvem desde infraestrutura e patrocínio até janelas climáticas ideais, mas o potencial da região é enorme. Temos ondas de classe mundial e fãs engajados. É uma questão de tempo e construção estratégica”, explica Martinho.
Como podemos ver, o Brasil vive um momento único no surfe mundial – dentro e fora d’água. O desempenho dos atletas, a força das novas gerações, o crescimento do público e o interesse das marcas mostram que o país não é apenas uma potência esportiva, mas também um dos motores de desenvolvimento da modalidade em nível global. Para saber mais detalhes sobre os bastidores desse sucesso e o futuro da WSL na América Latina, leia a entrevista completa com Ivan Martinho, CEO da WSL América Latina, na íntegra. O papo está muito rico e ainda conta com informações exclusivas sobre os Jogos Olímpicos de Los Angeles e uma reflexão sobre a preservação ambiental das praias e oceanos feita pela liga.
🎙️ Entrevista com o Insider Ivan Martinho, CEO da WSL América Latina
1 – O surfe virou esporte olímpico em Tóquio 2020, esteve presente em Paris 2024 e já está confirmado para Los Angeles 2028. Qual o impacto dessa visibilidade para a modalidade e para a WSL?
Ivan Martinho: A entrada do surfe nos Jogos Olímpicos foi um divisor de águas. Trouxe uma visibilidade inédita, inseriu o esporte em novos territórios de mídia e aumentou o interesse de patrocinadores institucionais. Para a WSL, isso significou uma maior valorização do nosso produto e de nossos atletas, que passaram a ser reconhecidos como embaixadores nacionais.
O ciclo olímpico também ajuda a expandir a base de praticantes e reforça o surfe como um esporte de alto rendimento, sem perder sua essência cultural e de conexão com a natureza. A medalha de ouro do Ítalo no Japão, a prata da Tati e o bronze do Medina viraram focos internacionais e recorde de audiência na TV Globo, por exemplo.
2 – Ainda falando sobre os Jogos Olímpicos, teremos alguma novidade para a próxima edição? Podemos esperar o uso da piscina de ondas no lugar do mar?
Ivan Martinho: Ainda é cedo para cravar o formato da próxima edição, mas o que posso dizer é que a conversa entre WSL, Comitê Olímpico e demais entidades está ativa e construtiva. A piscina de ondas é uma possibilidade técnica, mas tudo dependerá dos objetivos da organização dos Jogos.
A presença do surfe em Los Angeles é simbólica: estamos falando de uma cidade com forte cultura de praia, ligada ao surfe californiano e global com picos icônicos e consagrados. Seja no mar ou em ondas artificiais, a certeza é que o esporte continuará sendo uma das grandes atrações do evento.
3 – A rivalidade entre Brasil, EUA e Austrália sempre movimentou o surfe mundial. Como você vê essa disputa atualmente? E quais são os próximos mercados em ascensão?
Ivan Martinho: Essas rivalidades são saudáveis e fazem parte da história do esporte. Hoje, vemos o Brasil como protagonista em performance e engajamento, mas os EUA, Hawaii e a Austrália seguem como potências. Ao mesmo tempo, há novos mercados emergindo: Indonésia, Japão e até países africanos começam a revelar talentos e a investir em estrutura. Isso mostra a globalização do surfe e reforça a missão da WSL de fomentar o esporte em todos os continentes.
4 – Mudando um pouco de assunto, como a WSL trabalha para equilibrar o crescimento do surfe com a preservação ambiental das praias e oceanos?
Ivan Martinho: A preservação ambiental faz parte do DNA da WSL. Nos eventos do CT, criamos o programa WSL One Ocean justamente para mobilizar atletas, fãs e parceiros em torno de ações concretas em prol dos oceanos. Trabalhamos com metas de sustentabilidade nos eventos, como zero uso de plástico descartável nos eventos, neutralização de carbono e educação ambiental nas comunidades locais.
Também trabalhamos com esse mesmo comprometimento nos nossos eventos regionais, e em todas as etapas do Circuito Banco do Brasil de Surfe. Além de collabs, como fizemos com a NBA no programa Nets For Change, onde removemos 1 tonelada de redes de pesca descartadas no mar e transformamos em cestas de basquete para programas sociais da NBA, também usamos nossa plataforma global para inspirar mudança de comportamento. O surfe depende diretamente da saúde do planeta, e temos uma responsabilidade com essa causa.
5 – Por fim, o surfe se conecta muito com a cultura jovem e digital. Como a WSL usa as redes sociais para engajar o público e atrair novos fãs?
Ivan Martinho: A WSL é uma plataforma nativa do digital. Foi a primeira liga a usar o webcast e streaming como fonte de transmissão. Nossos fãs são altamente conectados, e as redes sociais são um canal essencial para construir relacionamento, contar histórias e atrair novas audiências. Investimos em formatos diversos — de highlights e bastidores a séries documentais e conteúdo educativo — sempre com linguagem jovem, acessível e visualmente forte. E tudo isso com foco em dados: acompanhamos em tempo real o que engaja e ajustamos nossas estratégias para manter a comunidade ativa e crescente.