Setembro de 2021 ficou marcado pelo fim de mais uma temporada do circuito mundial de surfe da World Surf League. Mais do que isso, foi a primeira vez que a WSL teve certeza que teria seus campeões coroados dentro d’água. Foi através do novo formato, conhecido como “WSL Finals”, que Gabriel Medina superou Filipe Toledo, e venceu o seu terceiro título mundial, no evento de surfe mais assistido de todos os tempos. Tudo isso no ano de estréia do esporte nas Olimpíadas.
A temporada de 2021 também selou por completo a dominância da “Brazilian Storm”, onda de títulos e vitórias de atletas brasileiros que mudaram a cara do surfe no mundo e que vem crescendo desde 2014, ano do primeiro título de Medina. No Championship Tour masculino, Ítalo Ferreira completou um pódio 100% brasileiro, com o terceiro lugar. No feminino, Tatiana Weston-Webb garantiu o vice-campeonato para o Brasil.
Este artigo ilustra o cenário geral da liga, com destaque para o seu modelo de negócios de sucesso e a dominância do Brasil no esporte. Tive a oportunidade de ter uma excelente conversa com o CEO Latam da WSL, Ivan Martinho, que contribuiu com sua visão sobre o modelo de negócios e o futuro da liga.
Surfe pelo conteúdo por aqui:
O que é a WSL?
A World Surf League, popularmente conhecida como WSL, é a “casa global do surfe”. A organização tem sua sede em Santa Monica, na Califórnia, além de outros escritórios regionais espalhados pelo mundo. A liga é composta por “Tours e Eventos”, que englobam todas as modalidades do esporte, e coroa o campeão mundial de cada divisão.
História do circuito mundial de surfe
“A WSL é uma marca recente, mas ela existe como instituição esportiva desde 1976.” — Ivan Martinho, CEO Latam WSL.
Originalmente as competições de surfe eram eventos promovidos pelas empresas de surfwear mundo a fora como meio de ativação de marcas como a Quiksilver. A partir da realização desses eventos independentes, surgiu a necessidade de se criar uma associação que pudesse representar a organização dos campeonatos e a participação dos diversos atletas, além de cuidar das datas e locais onde seriam realizados esses campeonatos. Fundado por Fred Hemmings e Randy Rarick, o International Professional Surfers (IPS) foi o primeiro corpo administrativo do surfe profissional. Os eventos independentes tomaram forma de circuito, e em 1983, a IPS se tornou uma associação, sob um novo nome: Association of Surfing Professionals (ASP). E assim se manteve até 2015.
Antes da mudança mais recente, de ASP para WSL, a estrutura societária da liga era composta 50% por surfistas profissionais e 50% por marcas organizadoras dos eventos, entre elas a Billabong, Quiksilver e Rip Curl. Em um cenário de rápida evolução do esporte e sua complexidade, a ZoSea, formada por um grupo de investidores liderado por Paul Speaker, ex-executivo da Quiksilver, e Terry Hardy, gestor de carreira do multicampeão Kelly Slater, conseguiu fechar um acordo para assumir o controle de todos os eventos, e centralizou a liga. A ASP não podia mais ser um “side-business” daquelas marcas. O modelo de negócios e a oportunidade chamaram atenção de Dirk Ziff, bilionário norte-americano que investiu alguns milhões de dólares na ASP. Nessa mesma época, Speaker assumiria como CEO. Em 2015, após passar por um processo de rebranding, a ASP passou a se chamar WSL, marca que viria a se tornar, alguns anos depois, conhecida em todo o mundo.
Modelo de negócios
Não é nada incomum ver ligas esportivas nascendo com inspirações em modelos de sucesso passados, como foi o caso da Premier League com a NFL, por exemplo. A WSL, porém, é caracterizada por um modelo de negócios que pode ser chamado de único.
Como referências, Ivan Martinho, principal executivo da WSL na América Latina, cita o UFC e o ATP: “O modelo de negócios não é inspirado, mas se assemelha, de certa forma, ao que seria o UFC antes de ser vendido para a IMG. Eram eventos produzidos por investidores, que mantinham exclusividade sobre os atletas da competição. Do ponto de vista esportivo, se assemelha mais à ATP, de tênis. Temos a nossa qualificação: pro-junior, depois Qualifying Series (QS), QS1000, QS3000, QS5000, seguido do Challenger Series (CS), e por último o Championship Tour (CT). Tudo isso com uma lógica de ranqueamento esportivo. Mas voltando ao ponto de vista de negócios, a ATP é uma associação, a WSL é uma liga.”
Os 4 pilares da WSL
“O propósito da liga é transformar o mundo a partir da força aspiracional do surfe. A partir daí, o posicionamento da nossa marca está apoiado em quatro pilares…” — Ivan Martinho, CEO Latam WSL.
- Performance
- Sustentabilidade
- Igualdade
- Lifestyle
Performance
O primeiro pilar, performance, fala por si só. O Championship Tour coroa o campeão mundial, promovendo a competição de mais alto nível do surfe profissional. São as melhores ondas e os melhores atletas.
Sustentabilidade
O foco em sustentabilidade é uma das características mais reconhecidas da World Surf League. O esporte acontece nos oceanos, portanto a liga entende que deve ter a legitimidade e obrigação de cuidar disso. Uma das principais iniciativas da área é a PURE, ONG que nasceu dentro da WSL, que tem o objetivo de conscientizar e educar sobre sustentabilidade, com foco em salvar os oceanos do planeta.
Igualdade
A WSL premia os seus atletas masculinos e femininos de maneira idêntica, com os mesmos valores de prêmios para ambas as categorias desde 2019, sendo a pioneira entre ligas esportivas globais dos Estados Unidos, e uma das primeiras em todo o mundo, a estabelecer a igualdade das premiações.
Lifestyle
Música, moda, viagens e tudo que se refere ao lifestyle único do surfe é explorado pela liga. A linguagem e apresentação dos broadcasts de eventos, e a própria lógica de eventos espalhados por todo o mundo, são bons exemplos do uso desse pilar.
Marcas e patrocinadores da WSL
“É sob esses pilares que nos posicionamos como liga, gerando histórias para ganhar legitimidade dentro de cada um desses quatro pilares. A partir disso, criamos a oportunidade de atrair a atenção, não somente das marcas que chamamos de endêmicas, que sempre estiveram conosco. Afinal, eram as antigas donas da liga. Deixaram de ser donas e passaram a ser patrocinadoras de nossos eventos. (…) Conseguimos continuar tendo um produto relevante para manter a atenção dessas marcas, mas também conquistar outras não-endêmicas.”
Alguns parceiros da WSL:
- Anheuser-Busch
- Red Bull
- Jeep
- Quiksilver
- Roxy
- Rip Curl
- Billabong
- Vans
- Boost Mobile
- Hydro Flask
- MEO
- Woolmark
- Swatch
- Barefoot
- Jose Cuervo
- Polo Blue
- TropicSport
- Corona
- Oi
- Localiza
- Havaianas
Sem bilheteria, de onde vem a receita da WSL?
Estamos acostumados a ver bilheteria e programas de benefícios na compra de ingressos, como o sócio-torcedor ou o season ticket, sempre entre as principais linhas de receita de ligas e clubes. No mundo do surfe, por outro lado, não existe essa frente.
“Essa é uma condição do nosso esporte. Uma condição que está posta, então trabalhamos com ela. O que fazemos, obviamente, é maximizar todas as outras receitas na medida do possível. Direitos de transmissão, patrocínios, licenciamento, hospitalidade… Já estamos acostumados a trabalhar com eventos ‘broadcast only’, sem ter a receita do match day. Temos relevância para vender os direitos de transmissão (…) e nossos acordos permitem que a gente trabalhe essas transmissões nas nossas plataformas proprietárias, como site e app.” afirma Martinho.
A WSL é a terceira liga com maior engajamento social com mais de 13M de seguidores nas redes sociais da marca, além de outros 36M no agregado de seus atletas.
WSL Finals: o novo formato do campeonato mundial de surfe
Até 2019, o CT contava com um modelo de competição de pontos corridos: o campeão era aquele que acumulava o maior número de pontos ao longo de cada uma das etapas do circuito na temporada, similar ao modelo da competição de pilotos na Fórmula 1, onde o vencedor da etapa leva o maior número de pontos e esse valor decresce conforme a colocação final piora.
No ano de 2021 foi implantado o formato de “WSL Finals”. O ranqueamento por pontos corridos se mantém, o que muda é como é definido o campeão. Tanto para a categoria masculina, quanto para a feminina, o top-5 do ranking ao final da temporada participa de “playoffs”. Quanto mais alta a colocação no ranking, maior a vantagem. Fazendo um paralelo com o video-game, é como se os surfistas batalhassem para passar de fase até chegarem à disputa mais difícil, ao nível mais alto, os adversários mais bem preparados. Cada fase é composta de uma bateria, onde o vencedor leva a melhor. Com exceção da última fase, que é uma série de melhor de três baterias. O 5º enfrenta o 4˚, para decidir quem enfrentará o 3˚, para decidir quem enfrentará o 2˚, para decidir a grande final.
“Temos feito diversas transformações na liga. Primeiro nos locais dos eventos, depois no formato e assim por diante. E isso exige coragem dos executivos, porque toda vez que você faz uma mudança estrutural, elas nunca são unânimes. Sobretudo pelos apaixonados pelo esporte. Encaramos muito, por exemplo, a crítica de que esse modelo novo poderia não ser justo esportivamente. (…) No fundo o nosso trabalho é desenvolver o surfe como plataforma e como esporte. (…) Inovar e tentar formatos novos é o nosso dia a dia, se fizermos mais do mesmo, não vamos crescer.
A inspiração para esse formato surgiu lá em 2019, com o formato de pontos corridos, quando, por uma coincidência, Ítalo Ferreira e Gabriel Medina se enfrentaram para decidir o título mundial. E até então aquela tinha sido a bateria de surfe mais assistida da história. Mas aquilo foi uma coincidência, o campeonato sendo decidido na última bateria. Por outro lado, naquele mesmo ano, no feminino, a Carissa (Moore) estava no vestiário quando foi avisada que ganhou (o título mundial). A imagem dela ganhando é ela sendo avisada pelo Barton Lynch dentro do vestiário.
A premissa, então, era: criar uma lógica de coroar os surfistas campeões saindo da água. Isso traz emoção, audiência, e uma provável audiência nova. Essa era a expectativa. A partir daí, foram discutidos inúmeros modelos até chegarmos ao modelo do Finals. E sabemos agora que é um modelo que veio para ficar. (…) Foi o dia de surfe mais assistido na história, não só em número de pessoas, mas também em ATS (average time spent).”
Brasil no mundial de surfe
Até 2014 o Brasil não tinha nenhum título mundial de surfe. De lá para cá, foram 5 conquistas por 3 atletas — e ainda podemos ressaltar que, por conta da pandemia, não existiu um campeão em 2020. O Brasil também é o país com mais surfistas no CT masculino, com 13 atletas, e mais duas no feminino. Isso tudo sem falar da medalha de ouro nas Olimpíadas de Tóquio, na primeira participação do esporte nos Jogos.
Surfistas brasileiros no WSL Championship Tour 2021:
- Gabriel Medina
- Ítalo Ferreira
- Filipe Toledo
- Yago Dora
- Deivid Silva
- Adriano de Souza
- Jadson André
- Miguel Pupo
- Caio Ibelli
- Peterson Crisanto
- Alex Ribeiro
- Matheus Herdy
- Lucas Vicente
- Tatiana Weston-Webb
- Silvana Lima
“O número grande de praticantes no país, junto da possiblidade de seguir a carreira profissional. (…) O suporte dado à geração anterior de atletas foi capaz de fazer com que os profissionais de hoje tivessem a capacidade de dedicar as suas vidas à carreira profissional de surfe. Quanto mais essa inspiração se cria, sobre o Gabriel (Medina) ou sobre a Tati (Weston-Webb), mais se cria a expectativa de ‘quem é o próximo?’. E se existe essa expectativa, essas referências, eu como marca ou apoiador, posso olhar para isso como um investimento de longo prazo. Criar a referência que vai substituir o campeão que atua hoje.” comenta Ivan.
Cultura acima de tudo
Está claro que a WSL já é uma das grandes referências da indústria esportiva mundial. É uma marca global e especialista em gerar valor para seus stakeholders e parceiros. E, diferentemente de grandes ligas “business first”, como a NFL, a World Surf League moldou a sua própria maneira de fazer negócios. Pensando sempre na essência do esporte que governa, e se apoiando em seus ideais bem definidos. É o modelo “culture first”, o grande responsável pelo impulsionamento o crescimento da liga mundial de surfe.
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