Negligenciado durante décadas e até proibido por lei até 1941, o futebol feminino brasileiro tem conquistado melhorias expressivas e direitos básicos nos últimos anos, mas ainda está longe de ser reconhecido como prioridade no cenário esportivo nacional. Desde o incentivo esportivo na infância até a compensação financeira recebida pelas atletas, são inúmeros desafios para as mulheres que tentam seguir essa carreira no país do futebol.
Nos últimos anos, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) vem estimulando o fortalecimento da modalidade, com medidas como a criação de novos campeonatos oficiais e regras que visam o maior investimento por parte dos clubes. Em 2022, por exemplo, a CBF dará início a mais uma competição nacional de futebol feminino, o Brasileirão Feminino A3, uma espécie de terceira divisão. Com a criação da nova categoria, o número de equipes femininas filiadas à CBF para disputa de campeonatos oficiais saltou de 54 para 62.
Além disso, o futebol feminino tem conquistado audiências e públicos cada vez maiores, o que, consequentemente, atrai mais patrocinadores e maiores investimentos para a modalidade. Porém, as atletas ainda precisam driblar obstáculos problemáticos, como a desigualdade nos valores recebidos em comparação ao futebol masculino e o atraso no investimento esportivo, em comparação com países como Estados Unidos e Espanha, onde o futebol feminino está cada vez mais presente no mercado esportivo e entre os eventos mais frequentados pelo público.
Conquistas recentes do futebol feminino
O futebol feminino tem conquistado condições melhores e direitos fundamentais para o desenvolvimento da modalidade, principalmente em países da Europa e nos Estados Unidos. Após seis anos de luta por igualdade salarial entre as seleções feminina e masculina, a US Soccer (Federação de Futebol dos Estados Unidos) anunciou, no dia 18 de maio, que irá igualar os valores pagos como bônus de premiações entre homens e mulheres. A Federação norte-americana, que já havia igualado os salários pagos para os atletas de ambas as modalidades, pagará o mesmo valor de 24 milhões de dólares (122 milhões de reais) como bônus às atletas do time nacional.
O anúncio chegou semanas depois do TikTok oficializar o acordo com a União das Federações Europeias de Futebol (UEFA) para se tornar patrocinador global do Campeonato Europeu de Futebol Feminino de 2022. A plataforma chinesa, uma verdadeira gigante das redes sociais, se vinculou novamente à UEFA, após ser patrocinador global da Euro 2020, realizada no ano passado. Além de agregar financeiramente à competição, o acordo de patrocínio também impulsionará o futebol feminino e a Eurocopa Feminina 2022 para milhões de usuários do TikTok ao redor do mundo.
A próxima Eurocopa Feminina está a caminho de ser o maior evento esportivo europeu feminino da história. De acordo com um relatório publicado pela FA (Associação de Futebol da Inglaterra) e pela UEFA, o torneio, realizado na Inglaterra, deve movimentar 54 milhões de euros em atividade econômica para as nove cidades-sede. As cidades anfitriãs esperam 96 mil turistas, além de uma audiência de transmissão internacional que pode chegar a mais de 250 milhões de pessoas em mais de 195 territórios ao redor do mundo. O relatório ainda revela que as vendas de ingressos para o torneio estão a caminho de dobrar o público do UEFA Women’s EURO 2017 na Holanda, que recebeu pouco mais de 240.000 torcedores.
A Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2019, realizada na França, já havia comprovado essa tendência ao registrar uma audiência recorde de 993 milhões de telespectadores na TV e 482 milhões pelas plataformas digitais, de acordo com dados da consultoria Deloitte. A audiência média global, de 17,3 milhões de telespectadores por partida, representou mais do que o dobro da Copa do Mundo feminina de 2015, realizada no Canadá, que registrou 8,4 milhões de telespectadores por jogo.
No Brasil, apesar dos investimentos e das proporções do futebol feminino estarem defasados em comparação a outros países, algumas conquistas importantes se concretizaram na última temporada. O Brasileirão Feminino nunca teve uma transmissão tão acessível como em 2021. A competição esteve presente em seis diferentes meios de comunicação, entre canais de televisão como Band e SporTV, até plataformas digitais, como Eleven Sports, Tik Tok e Desimpedidos.
Torneios de futebol feminino, como o Brasil Ladies Cup, campeonato amistoso realizado pela Federação Internacional de Football Soccer Society em parceria com Federação Paulista de Futebol, também estão se tornando cada vez mais populares entre os torcedores e os investidores do mercado publicitário. A edição realizada no ano passado estabeleceu novos recordes de audiência e contou com mais de 20 empresas investindo no torneio. Além de ter todas as suas partidas transmitidas no SporTV e a grande final em canal aberto, na Globo, dentro da programação do Esporte Espetacular.
Audiência recorde no Brasil
O aumento do interesse do público e das audiências registradas nas partidas de futebol feminino está diretamente ligado aos novos investimentos e contratos de patrocínio que estão sendo firmados recentemente. Por isso, é importantíssimo ressaltar o desempenho inédito alcançado pelo futebol feminino brasileiro na temporada passada. Confira abaixo alguns dos números de audiência registrados:
- Durante as quinze primeiras rodadas do Brasileirão Feminino, o Desimpedidos teve uma média de 309 mil visualizações por partida e mais de 4,6 milhões de visualizações no seu canal do YouTube.
- Nas duas finais entre Corinthians e Palmeiras, transmitidas pelo TikTok, a conta oficial do Brasileirão Feminino registrou 655 mil espectadores.
- A grande decisão também movimentou a audiência da TV Bandeirantes, que registrou uma média de 5,2 pontos de audiência, com picos de 6,1 ao longo do jogo. Já o SporTV chegou à liderança entre os canais da TV fechada com a transmissão da final, com 1,5 ponto na Grande São Paulo.
- O Campeonato Paulista de Futebol Feminino estabeleceu um novo recorde de público presente em estádio. No jogo de volta da final entre Corinthians e São Paulo, a Neo Química Arena recebeu um público de 30.077 pessoas, batendo o seu próprio recorde de 2019, que era de 28.862.
- A transmissão da final do Paulistão pelo SporTV liderou a audiência entre todos os canais de TV por assinatura, sendo a maior audiência de um jogo de futebol feminino no canal desde 2014. Enquanto a Federação Paulista de Futebol (FPF) alcançou a sua maior audiência em um jogo de futebol feminino ao transmitir a partida pela FPF TV, com 427,2 mil espectadores únicos, 5,9 milhões de impressões e 532,6 mil visualizações de impressões.
Na atual temporada, o Brasileirão Feminino conta com transmissão aberta pela TV Band, que detém os direitos da competição com exclusividade até 2023. Nos canais fechados, apenas o SporTV transmite as partidas. Porém, a parceria fechada entre a CBF e a plataforma digital Eleven Sports, com acordo de transmissão para jogos de todas as divisões pelos próximos três anos, deve aumentar ainda mais o alcance do futebol feminino nas próximas temporadas.
Cinco partidas da primeira divisão do Brasileirão Feminino 2022 já foram transmitidas de forma gratuita pela Eleven Sports na primeira rodada do campeonato. A plataforma online disponibilizará todas as partidas que não estejam na TV das séries A1, A2 e A3. Assim, aumentando o alcance do futebol feminino para o público brasileiro. No Brasil, a Eleven Sports já vinha transmitindo partidas das Séries A1, A2 e futebol de base nos últimos três anos.
Por mais que se deva comemorar o crescimento do futebol feminino no Brasil, é importante ressaltar que este avanço ainda não se reflete em melhores condições financeiras, principalmente para as atletas. Assim como em diversos setores da sociedade, as mulheres recebem menos do que homens para exercer as mesmas funções.
Desigualdade entre valores recebidos por homens e mulheres
Apesar do recente fortalecimento do futebol feminino no Brasil, a desigualdade entre os valores pagos para homens e mulheres ainda é expressiva. Até mesmo uma das melhores equipes femininas em atividade, a do Corinthians, serve como exemplo desta problemática. De acordo com informações divulgadas pelo jornalista Jorge Nicola no fim de 2020, o valor do elenco feminino do Corinthians por temporada era de 5 milhões de reais. O que não representa nem metade do valor pago aos jogadores do time masculino. Atualmente, os três jogadores com os maiores salários do elenco, William, Róger Guedes e Giuliano, faturam mais de 10 milhões por ano cada.
Os valores pagos como premiação também apresentam uma notável discrepância entre homens e mulheres. Apesar do reajuste feito pela CBF para a temporada de 2021, o valor de premiação pago ao campeão do Brasileirão feminino não chegou nem a 1% do valor pago ao masculino. Enquanto a premiação do masculino é de R$ 33 milhões, o valor pago ao campeão feminino em 2021, o Corinthians, foi de R$ 290 mil. O que representa uma quantia consideravelmente menor até em comparação ao valor pago para o time que ocupa o 16º lugar do Brasileirão masculino: R$ 11 milhões. Confira abaixo os valores pagos pela CBF como premiação para ambas as competições.
Brasileirão Feminino | Brasileirão Masculino | ||
Fase da competição | Valor pago | Fase da competição | Valor pago |
Campeão | R$ 290 mil | Campeão | R$ 33 milhões |
Vice-campeão | R$ 190 mil | Vice-Campeão | R$ 31,3 milhões |
3ª fase | R$ 35 mil | 3º lugar | R$ 29,7 milhões |
2ª fase | R$ 30 mil | 4º lugar | R$ 28 milhões |
1ª fase | R$ 25 mil | 15º lugar | R$ 11,9 milhões |
16º lugar | R$ 11 milhões |
Porém, esse problema não é exclusivo do campeonato brasileiro, estando presente também em competições continentais e até mesmo grandes torneios mundiais. O maior campeonato continental da América do Sul, a Libertadores da América, oferece uma premiação de R$ 8,5 milhões para a edição feminina, enquanto os campeões do torneio masculino faturam R$ 91,5 milhões, um valor quase onze vezes maior.
Até o maior campeonato futebolístico do planeta, a Copa do Mundo, apresenta uma discrepância entre os valores pagos para homens e mulheres. Enquanto a última seleção masculina campeã, a seleção francesa, ganhou US$ 38 milhões em 2018, na copa feminina, a campeã tem direito a um prêmio de US$ 4 milhões. Um valor quase dez vezes menor e que não se equipara nem ao valor pago para o último colocado da Copa do Mundo de seleções masculinas, que recebe US$ 9 milhões pela participação.
Diferenças entre o futebol feminino brasileiro e de outros países
Apesar dessas problemáticas não serem exclusivas do futebol feminino brasileiro, existem outros países que estão demonstrando uma evolução impressionante para combatê-los e elevar o nível das competições femininas nacionais. Além do já mencionado Estados Unidos, que tomou a decisão história de igualar tanto os salários quanto os bônus de premiações entre homens e mulheres, outro país que pode servir como exemplo é a Espanha.
Nos últimos anos, a Espanha passou a investir pesado no futebol feminino e, atualmente, se tornou notável a evolução absurda na modalidade. Com o investimento dos principais clubes do torneio masculino e com forte divulgação midiática, a Liga Espanhola Feminina conquistou seus próprios patrocinadores e um público cada vez maior acompanhando o campeonato – comparando a temporada do Campeonato Espanhol feminino de 2016-2017 com a de 2017-2018, a audiência cresceu 40%, segundo os dados oficiais da organização do torneio.
Nos primeiros meses de 2022, dois recordes de audiência em jogos de futebol feminino foram estabelecidos na Espanha. No dia 30 de março, o clássico entre as equipes femininas do Barcelona e do Real Madrid registrou um público de 91.553 pessoas no estádio Camp Nou, a maior audiência na história até então. Apenas algumas semanas depois, no dia 22 de abril, a partida entre Barcelona e Wolfsburg, também no Camp Nou, quebrou novamente o recorde de audiência em jogos de futebol feminino, ao receber 91.648 pessoas. A partida também estabeleceu a maior audiência registrada no estádio na atual temporada.
O maior público de uma partida de futebol feminino até então havia sido registrado na Copa do Mundo de 1999, quando 90.185 pessoas acompanharam a partida entre a seleção norte-americana e seleção chinesa no estádio Rose Bowl.
Perspectivas futuras
Segundo especialistas e profissionais da área, a diferença entre os modelos de negócio ainda é um desafio para driblar os obstáculos enfrentados pelo futebol feminino brasileiro. O fato de o futebol feminino ainda estar em fase de consolidação no país, com valores de ingressos mais baixos e número menor de investidores e patrocinadores, é apontado como uma das principais causas para a desigualdade entre os valores pagos para homens e mulheres.
Os exemplos de países como Estados Unidos e Espanha, aliados à evolução gradual e ao amadurecimento do futebol feminino no Brasil ao longo dos últimos anos, comprovam que é possível fazer do futebol feminino um grande negócio, com públicos recordes e diversidade de patrocinadores. Porém, a participação ativa do público também é fundamental neste processo, tanto comparecendo e assistindo aos jogos quanto endossando os discursos das jogadoras brasileiras em busca de contratos melhores, salários mais justos e condições básicas para que possam desenvolver sua carreira.
Com o espaço cada vez maior para a modalidade na mídia nacional, os clubes também já se atentam às possibilidades de novos negócios, principalmente na área de marketing, com suas equipes femininas. Atuando de forma ativa nesse momento de consolidação, os clubes do Brasil, a CBF, a mídia nacional e o público amante do futebol podem retirar o futebol feminino da sombra do masculino e, assim, ajudar a modalidade a assumir o seu devido espaço, sua própria história e seus próprios recursos.
Créditos: Estruturação e coordenação por Thiago Dias e Guilherme Calafate
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