A atuação frente ao Borussia Dortmund, na última semana, parecia o fechamento impecável de uma narrativa vencedora. Vini Jr. era capa de jornais, portais e revistas; a mídia brasileira já se preparava para anunciar o primeiro brasileiro a vencer a concorrida Bola de Ouro desde Kaká, em 2007; e as casas de apostas, 24 horas antes do anúncio, pagavam 1,01 para Vinícius como vencedor do pleito – o que significa dizer, no dialeto das bets, que ele era o virtual ganhador do prêmio.
E aí as coisas mudaram. Da RMC Sport veio a primeira pista de que não seria Vini o vencedor, informação que foi logo confirmada por Fabrizio Romano, importante insider do mercado da bola e um dos mais bem informados jornalistas de futebol no mundo. Não demorou para o assunto dominar os portais brasileiros. Até que veio a confirmação, através de nota do Real Madrid, de que o clube e seus representantes não iriam à cerimônia em Paris. O clube, escolhido “time do ano”, e seu técnico, Carlo Ancelotti, eleito “técnico do ano”, não estiveram lá para receber suas homenagens. E o clube deu sua explicação:
“Se os critérios do prêmio não proclamam Vinicius como vencedor, esses mesmos critérios deveriam proclamar Carvajal como vencedor. Como isso não ocorreu, é óbvio que o Ballon d’Or-UEFA não respeita o Real Madrid. E o Real Madrid não vai aonde não é respeitado”, declarou o clube à AFP.
Vale lembrar que os merengues são o clube com maior quantidade de Ballon D’ors, com 12, ao lado do rival Barcelona. E que a citação à UEFA em sua nota não é por acaso: clube e federação travaram queda de braço, anos atrás, quando o Real Madrid liderou o movimento pela criação de uma Superliga Europeia, rejeitada pela UEFA. O movimento, que visava dar mais poder de decisão aos clubes, não foi à frente, mas estimulou uma mudança profunda na estrutura da UEFA Champions League, principal torneio de clubes da federação.
Voltando à premiação: à essa altura, já era claro que o prêmio não seria do brasileiro e tampouco de Jude Bellingham, outro craque do time espanhol na temporada terminada há pouco. As casas de apostas chegaram a suspender novas operações na premiação e os retornos em Rodri caíram de 10 para 1,02 em questão de horas. O meio-campista espanhol, campeão da Euro e um dos principais nomes do Manchester City, seria confirmado, horas depois, como o grande vencedor da noite.
As redes e imprensa se dividiram sobre a decisão. A ausência de Vini e do Real Madrid foi criticada por muitos, enquanto outros se debruçaram sobre o “roubo” que havia sofrido Vini Jr. Perfis de clubes e competições se prontificaram a publicar highlights da temporada de Rodri, uma coletânea de lances que não deve emocionar nenhum fã de futebol.
O debate, então, passou para o campo de tentar compreender a decisão. A Revista Placar, em sua edição de agosto, já havia alertado para uma tendência de queda no favoritismo do brasileiro, citando o mau desempenho individual na Copa América e o que ela chamou de “antipatia”, supostamente gerado por conta de seu posicionamento ativo contra o racismo.
O evento, boicotado pelo time mais importante da Europa, com mais indicados a prêmios na noite, ficou esvaziado. O vencedor, que sequer tem rede social, causou muito menos furor e comoção do que seus concorrentes. E o resultado, vazado horas antes da divulgação oficial, ficou perdido no tempo. E então resolvemos discutir mais a fundo: qual a função de um prêmio individual no futebol?
Um pouco de contexto
Para responder a essa pergunta, é necessário voltarmos no tempo. Criado nos anos 50 pela revista France Football, a Bola de Ouro tinha a função de premiar o “futebolista europeu do ano” – regra que seria alterada apenas em 94. Em uma época onde o esporte não era acessível a todos, celebrar um atleta específico era um jeito de “contar uma boa história” para o público.
Quer saber quem são os grandes nomes do futebol europeu nos anos 70? Olhe a lista de vencedores do Ballon D’or daquela década e terá uma fotografia do que aconteceu: a lista foi dominada por Cruyff (Ajax/Holanda), Beckenbauer e Müller (Bayern/Alemanha). Seus times e países foram as grandes histórias da década de 70, com múltiplas conquistas de Champions, final de Copa do Mundo e título da Euro.
E como ignorar a ascensão do futebol italiano nos anos 80? Primeiro nas figuras de Paolo Rossi e Michel Platini, vencedores da Champions pela Juventus e com campanhas de destaque por seleções; depois com o Milan e sua realeza holandesa de Gullit, Rijkaard e van Basten.
Claro, tivemos anos isolados em que o vencedor foi inesperado e, ao longo da história, pouco lembrado. Você precisa ser um fã muito hardcore de prêmios para saber que Belanov, e não Maradona, venceu o prêmio em 1986. Ou que Masopust levou em 1962 à frente de Garrincha. E por que isso aconteceu? Porque o prêmio era para europeus, apenas.
Com a criação do prêmio da World Soccer, nos anos 80, e da FIFA, no início de 90, o controle da narrativa do esporte não estava mais nas mãos da France Football. E isso se tornaria ainda mais desafiador com a explosão das transmissões televisivas pelo mundo.
No entanto, uma característica nunca perdeu seu espaço no Ballon D’or: o prêmio sempre foi eurocentrista. Revisitando vencedores, você verá que Matthias Sammer levou a melhor contra Ronaldo Fenômeno em 96. Ou que Shevchenko levou a melhor sobre Ronaldinho, em 2004. Ou que Owen foi o vencedor num ano em que Riquelme dominou por completo a Libertadores.
Com o passar dos anos, a revista criou novos prêmios – para goleiro, jogadora e jovem – com amplo domínio de prêmios e nomeações de europeus. O troféu Kopa, por exemplo, dado ao jogador jovem de maior destaque, foi vencido por europeus em suas seis edições. E nestas edições, somente um top-3 não havia nascido no continente. Esperar que subitamente a eleição mudasse completamente seu perfil seria ingenuidade da nossa parte.
Cada revista ou entidade tem o seu critério. A Revista Placar, que se inspirou na Bola de Ouro para criar a “Bola de Prata”, sempre publicava as notas em suas edições, para que os fãs acompanhassem o desenrolar da premiação durante o Campeonato Brasileiro. Esse acompanhamento dava a sensação de:
- 1) participação, por parte do leitor;
- 2) compreensão, em tempo real, do que estava acontecendo em toda a competição.
Em prêmios internacionais que olham para múltiplas competições e critérios, estabelecer parâmetros é muito mais difícil.
Quais são os critérios?
Em uma competição esportiva, há prêmios objetivos. O troféu é dado ao time vencedor; não ao melhor ou que joga mais bonito ou que encanta ou que tem mais torcida: o que vence. O prêmio de artilheiro é concedido àquele que mais fez gols. Quando falamos de prêmios individuais com critérios pouco claros, instaura-se o caos. Como comparar performance esportiva de um goleiro a de um armador? De um zagueiro à de um atacante? O que é “mais difícil”? O que “vale mais pontos”?
Com o boom dos jogos eletrônicos, fantasy games, apostas e aplicativos de acompanhamento de resultados, a comunidade futeboleira passou a olhar mais para estatísticas como um argumento para referendar uma opinião. Não por acaso, prêmios como o de Modric (2018) e Nedved (2003) passaram a ser contestados com maior frequência nos últimos anos. E aqui houve um acelerador sensível para essa percepção: Messi e Cristiano Ronaldo banalizaram os números.
Campeão da Champions League em 2012 e hoje embaixador do Ballon D’or, Didier Drogba falou sobre essa mudança de paradigma à época. Diversos atletas que conquistaram prêmios individuais fizeram 30 gols ou menos em suas melhores temporadas; já a dupla passou de 40 gols por ano por mais de 10 anos. Criou-se a percepção de que ninguém está no nível deles por causa dos gols. Deixamos de analisar o impacto que um jogador tem para seu time, para as conquistas dele, afinal, ele não fez 40+ gols como os icônicos jogadores.
No meio disto tudo, surgiram outras estatísticas e formas de analisar o esporte. Hoje é possível avaliar duelos ganhos, chances criadas, dribles tentados, assistências – como se fosse possível mensurar tudo que um jogador faz em campo. Por um lado, essas estatísticas ajudam a valorizar funções de menos destaque, por outro, se mal interpretadas, ajudam a distorcer o esporte. Há jogadores que cumprem papéis fundamentais para seus times com posicionamento, movimentação e outros atributos que não são capturados por estatísticas brutas.
E cada estatística tem um valor diferente em uma fase diferente do campo e jogo. O que é mais difícil: completar um passe trocado no campo de defesa, sem marcação, ou dentro da área adversária, entre 3 marcadores? Completar um drible com pouca pressão em um campo aberto realizada por um defensor individual fraco ou contra marcação dupla de dois dos melhores defensores? Marcar um gol estando sempre próximo ao gol adversário ou finalizando apenas uma vez a cada dois jogos? Colocar tais critérios em contexto é essencial para que eles tenham valor.
Outro argumento recorrentemente utilizado é o de conquistas. Fulano ganhou a Champions, mas sicrano ganhou a Copa do Mundo. O que tem mais valor? Como se mensura o valor das competições? E não é o título uma conquista coletiva? Por que premiar um jogador, então? E não estaria esse jogador em melhores condições de vencer do que outros?
Aplicando essa ideia no prêmio recém dado: Rodri ganhou a Euro com a Espanha. Se esse é um critério, porque não teve qualquer peso na decisão de 2004, quando a Grécia chocou o mundo? Ou em 2021, quando a Itália venceu a Euro? Esse tipo de conquista de grande impacto se faz perceber ao longo da lista de melhores do mundo – habitualmente, o time campeão tem vários jogadores em uma lista longa de melhores da temporada, com o topo sendo decidido por outros critérios. Em 2021, por exemplo, Jorginho foi o “eleito” da seleção italiana para estar no top-3. Ele havia vencido a Champions, meses antes, com o Chelsea e iniciou-se um lobby pelo volante. Mas, oras, ele não foi o melhor jogador do clube inglês na Champions e tampouco o melhor jogador da Itália na Euro. O que fez ele ser o “escolhido”? Cartaz.
Em alguns casos, é muito evidente quem é o jogador de melhor performance no time campeão. Ninguém conta a história da Copa do Mundo de 2022 sem citar Messi. Ou da Copa de 2002 sem falar de Ronaldo. Mas há casos em que o coletivo é o destaque – e aí um jogador é escolhido para representar essa ideia. Pode ser Jorginho, pode ser Cannavaro (2006), Neuer (2014). Pode ser Rodri.
Os critérios, portanto, não são óbvios. E são a razão para essa grande confusão. Ou não?
O jogo além do jogo
Os prêmios individuais de futebol ganharam uma última camada de complexidade para analisarmos. As redes sociais se tornaram o palco perfeito para debates acalorados, desrespeitosos, provocativos, quando não criminosos. Entre memes e “argumentos vitoriosos em 150 caracteres”, os prêmios assumiram um papel importante na representatividade dos atletas. Vini Jr. é o caso mais emblemático dessa discussão.
Ao assumir um papel de voz ativa na luta contra o racismo, o brasileiro se tornou um símbolo de orgulho e resistência para muitos fãs e um personagem “antipático” para tantos outros. O posicionamento firme e corajoso, jogou muita luz sobre problemas concretos da sociedade – espanhola, em especial – e tornou Vinicius um inimigo para torcedores rivais e membros da imprensa, que não aceitam a alcunha de racistas, mesmo diante de tantos casos registrados.
Ontem, durante a cerimônia, destacaram os critérios do Ballon D’or: Os organizadores afirmam que os três principais critérios de votação precisam ser: “Desempenhos individuais, caráter decisivo e impressionante”; “Desempenhos e conquistas da equipe”; e “Classe e jogo limpo”, com jornalistas dando a entender que Rodri superava o brasileiro no último dos critérios.
Mas o que significa ter classe? Dar entrevistas educadas? Cumprimentar seu adversário? Não fazer faltas? A divulgação dos critérios deixou a premiação ainda mais turva, pois não explica nada concretamente. No fim das contas, serviu apenas para endossar a tese de que Vinicius foi superado por algo que não tem a ver com o campo e que ele, corretamente, não parece disposto a abandonar.
“Cumprindo o protocolo e mostrando toda sua classe”, Rodri elogiou o concorrente, mas disse que o futebol estava bem representado. Será que está?
Justa valorização
Voltando ao argumento original da criação do Ballon D’or, um prêmio individual conta uma história ao público. Ela pode ser uma história boa, verossímil ou não. O que não muda é o fato de que ela é escrita. E ela precisa sempre ser analisada com contexto.
Rodri pode ter sido o melhor jogador de uma temporada aos olhos de certos interlocutores. Concorde ou não, está posto. Mas é necessário parcimônia na análise. Nem toda temporada tem o mesmo nível de competição e performance. Xavi e Iniesta são amplamente reconhecidos como dois dos melhores jogadores espanhóis na história. Nenhum dos dois conquistou este prêmio. Ambos conquistaram, com protagonismo, mais títulos por clube e seleção que Rodri – que, a bem da verdade, ainda está longe de encerrar sua brilhante carreira.
Os prêmios, quando criados, cumpriam uma função objetiva para o esporte. Era importante oferecer uma história para os fãs e atrair novo público. Era necessário criar contexto.
Muitos anos após ser criado, o Ballon D’or revisitou sua premiação. Pelé receberia 7 bolas de ouro na nova análise, Garrincha uma, Maradona duas. No fundo, não importa. A história é escrita pelos campos, pelas conquistas, pela capacidade de nos emocionar, pelo impacto cultural e social que causam e pela representatividade que assumem. Henry sempre será mais lembrado que Owen. A justa valorização é feita por aqueles que assistem o esporte diariamente. Não por quem acha que ainda controla a narrativa, quando isso não faz mais sentido. Os prêmios individuais servem para quem os promove. Não para quem os faz ter valor.
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