A saída de Lionel Messi do Barcelona, em agosto de 2021, não marcou apenas o fim de uma era gloriosa; foi também o ponto de partida para uma profunda crise esportiva, financeira e institucional. O clube catalão, que durante mais de uma década dominou o futebol europeu com sua filosofia de posse de bola, ídolos formados em casa e títulos memoráveis, viu-se diante de uma realidade abruptamente diferente.
A ausência do maior ídolo de sua história evidenciou fragilidades que vinham sendo mascaradas por sua genialidade em campo. O Barcelona entrou em um ciclo de reestruturação que, até hoje, segue em curso, com altos e baixos, e muitos desafios pela frente
A crise pós-Messi
A primeira consequência direta da saída de Messi foi a perda de competitividade esportiva. Sem seu camisa 10, o Barcelona mergulhou em instabilidade técnica, trocando de treinadores, vendo ídolos se aposentarem ou deixarem o clube, e enfrentando dificuldades para se classificar às fases finais da Champions League – algo impensável nos tempos de glória. No cenário doméstico, o time também oscilou, sendo superado por rivais como Real Madrid e Atlético de Madrid.
Entretanto, por trás da crise esportiva, estava um colapso financeiro agravado pela pandemia de COVID-19. A brusca queda de receitas com bilheteria, merchandising e eventos presenciais levou o clube a um desequilíbrio orçamentário severo. A já frágil saúde financeira do Barcelona, herdada de anos de má gestão, não resistiu ao impacto do confinamento global.
A folha salarial inflacionada, contratos desequilibrados e uma política de renovações pautada mais por vínculos emocionais do que por racionalidade administrativa evidenciaram o problema. A gestão de Josep Maria Bartomeu, marcada por uma espécie de “gratidão” excessiva com atletas consagrados ou promissores, concedeu acordos generosos e pouco sustentáveis, como os de Frenkie de Jong e Sergi Roberto, com salários elevados e cláusulas que se tornaram um fardo com o tempo
A saída de Messi, então, não foi apenas simbólica – foi inevitável. Sem margem para inscrevê-lo dentro das regras do Fair Play Financeiro de La Liga, e sem capacidade de abrir espaço na folha salarial devido aos contratos engessados, o clube perdeu seu maior ídolo por motivos puramente econômicos. A eleição de Joan Laporta, em 2021, trouxe um novo direcionamento à gestão, mas exigiu medidas drásticas. Os cortes de gastos e as chamadas “alavancas econômicas” – venda de percentuais de direitos futuros de TV e propriedades comerciais – geraram debates intensos e levantaram dúvidas sobre a sustentabilidade do projeto no médio e longo prazo.
O processo de reestruturação
A reconstrução do Barcelona tem se apoiado em três pilares principais: reequilíbrio financeiro, valorização da base e tentativa de reorganização institucional. Entre eles, o reequilíbrio das finanças tornou-se o mais urgente e desafiador. A nova gestão, liderada por Joan Laporta, teve que tomar medidas drásticas para lidar com um passivo bilionário, herdado da administração anterior. O clube renegociou contratos, vendeu ativos não-essenciais e ativou diversas “alavancas econômicas”, como a venda de porcentagens futuras de direitos de transmissão e da Barça Studios, numa tentativa de gerar liquidez imediata.
Essas medidas foram controversas, pois, embora tenham permitido a regularização de dívidas de curto prazo e a inscrição de jogadores em temporadas anteriores, comprometeram receitas futuras e levantaram dúvidas sobre a sustentabilidade do modelo a longo prazo. Um exemplo disso ocorreu na temporada atual, com a venda da Barça Studios — inicialmente usada como uma das principais alavancas econômicas — que, na prática, não se concretizou como esperado.
Essa frustração gerou dificuldades imediatas para o clube, incluindo problemas para inscrever o meia Dani Olmo,contratado na janela de verão. O Fair Play Financeiro imposto por La Liga seguiu atuando como um obstáculo constante, forçando o Barcelona a manter um rígido controle sobre sua folha salarial e a recorrer a soluções criativas no mercado, como contratações sem custo de transferência e empréstimos com cláusulas condicionadas ao desempenho.
A contenção de gastos também se refletiu na política salarial. Jogadores veteranos aceitaram cortes ou saíram do clube, enquanto jovens das categorias de base assumiram protagonismo nos elencos principais — uma estratégia tanto esportiva quanto financeira. A aposta em nomes como Pedri, Gavi, Alejandro Balde e Lamine Yamal reduziu custos e atendeu à necessidade de reposição técnica em um momento em que grandes investimentos eram inviáveis.
A nova realidade do clube
Além dos desafios internos, o Barcelona também precisa se adaptar a um futebol europeu cada vez mais dominado por clubes-estados e conglomerados financeiros. Com menos poder de compra que Manchester City, PSG e Bayern de Munique, o clube catalão busca diferenciação através de sua história, marca global e engajamento com os torcedores. A reformulação do estádio Camp Nou, transformado em um moderno centro de entretenimento, é um símbolo dessa nova fase: menos dependente de um único craque, mais focada na sustentabilidade e no fortalecimento da instituição como um todo.
Outro ponto importante é a internacionalização da marca. Mesmo sem Messi, o Barcelona segue como uma das instituições esportivas mais reconhecidas do mundo. O clube investe em redes sociais, parcerias comerciais, e mantém presença ativa em mercados como Estados Unidos e Ásia. A criação de conteúdos próprios, tours internacionais e campanhas de marketing voltadas à nova geração de fãs têm sido estratégias importantes para manter sua relevância no cenário global.
A temporada atual tem representado um ponto de virada importante no processo de reconstrução do Barcelona. Com a chegada do técnico alemão Hansi Flick, o clube voltou a apresentar um desempenho esportivo consistente pela primeira vez desde a saída de Lionel Messi. Mesmo com recursos limitados e um elenco enxuto, Flick conseguiu recuperar jogadores que vinham em baixa, como Raphinha e Íñigo Martínez, além de implementar um sistema tático eficiente e atrativo, que rapidamente conquistou o apoio da torcida.
Apesar da eliminação na semifinal da Liga dos Campeões, a equipe compensou com conquistas expressivas no cenário nacional: venceu a Supercopa da Espanha, a Copa do Rei e lidera LaLiga com boas chances de confirmar o título. A temporada também foi marcada pelo surgimento de uma nova promessa que tem encantado o mundo do futebol: Lamine Yamal. Com apenas 17 anos, o jovem atacante já se destaca como uma das grandes esperanças do clube e desponta como possível novo rosto da instituição para os próximos anos.
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Desafios e perspectivas futuras
Apesar das vitórias pontuais, a reconstrução do Barcelona ainda é marcada por incertezas. A instabilidade financeira, a pressão esportiva e a necessidade de resultados imediatos geram tensão constante. A comissão técnica e a diretoria precisam equilibrar o presente com o futuro, sem repetir os erros de gestões passadas que priorizaram soluções de curto prazo em detrimento da saúde do clube.
O sucesso dessa nova fase depende da paciência com o processo, da confiança nos jovens talentos e da habilidade em manter a essência do clube, mesmo em um contexto muito diferente daquele em que Messi reinou. O Barcelona pós-Messi não busca substituir o ídolo, mas sim reinventar-se coletivamente, com uma nova geração que honre o legado deixado por ele.