No último dia 20, o presidente Steve Parish, do Crystal Palace – clube londrino que ficou mais conhecido recentemente por aqui por constar no portfólio de clubes de John Textor, dono da SAF Botafogo – sugeriu que a Premier League adotasse um modelo de salary cap, o “teto salarial”, replicando um conceito praticado já em ligas americanas e que tenta estabelecer condições mais parelhas para a competição.
A proposta ainda é embrionária e veio entre diversos outros assuntos debatidos pela cúpula da Liga, mas o momento parece adequado para mergulharmos um pouco mais a fundo na ideia.
Premier League: a liga mais rica do mundo
Há 30 anos, o futebol inglês passou pela sua revolução. A Premier League foi criada, assumiu o comando das principais divisões do esporte no país e iniciou uma trajetória de popularizar sua marca no mundo todo. O processo foi extremamente bem sucedido: a Premier League é hoje a liga mais rica do planeta, possui um pedigree que atrai jogadores e espectadores de todos os cantos, e é encarado por diversos canais de televisão e streaming como o produto premium da sua grade horária.
Dominada pelo Manchester United no seu início, hoje a competição se estabeleceu no outro lado da cidade industrial, sendo amplamente dominada pelos Citizens, de Pep Guardiola. No meio do caminho, no entanto, viu seu troféu ser erguido também por Chelsea, Arsenal, Liverpool, Blackburn e Leicester. E, ainda que a disputa pelo topo esteja mais restrita nas últimas temporadas, a Premier League se orgulha de ser uma liga onde clubes com menor capacidade de investimento e condições de disputar títulos são capazes de atrair grandes talentos e brigar com clubes tradicionais de outros mercados europeus, mesmo que não tenham garantia de figurar nas competições continentais. Não tem muito tempo que jovens como João Gomes e Matheus Cunha, por exemplo, optaram por jogar no Wolverhampton para tentar a sorte em times mais tradicionais do continente, como Lyon e Atlético de Madrid, respectivamente.
O sucesso tem a ver com o trabalho bem feito de branding e distribuição do torneio pelo mundo, mas também com a abertura de capital gradual que aconteceu na liga e que, hoje, atinge quase todos os clubes da elite e boa parte da Championship. Há casos mais famosos, como o Chelsea e Manchester City, que saíram de uma situação esportiva medíocre e passaram a figurar no topo das competições, e também os menos famosos, como o Bournemouth, que já mudou de donos algumas vezes nos últimos anos, sem nunca ter tido resultado esportivo concreto. Entre os donos, há gente famosa, desconhecida, bilionários, grupos de investimentos, gente dos EUA, do Paquistão, Índia, Turquia, China, Tailândia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos.
A competição também concentra jogadores de mais de 60 países, incluindo Granada, Zimbábue, Estônia e Kosovo. Só do Brasil, são mais de 30 jogadores – a segunda nacionalidade com mais representantes no torneio. Ou seja: a Premier League é uma liga global disputada no Reino Unido.
E assim o é essencialmente por causa de dinheiro. Muito dinheiro. Como mostra o ótimo levantamento da Football Benchmark abaixo:
Para a temporada 2023/24, recém iniciada, clubes da Premier League gastaram, somados, mais do que todos os clubes da Ligue 1 (França), SPL (Arábia Saudita) e Serie A (Itália) juntos. E a Championship, 2ª divisão do país, também figura no ranking de ligas que mais investiram em reforços, a frente da Liga Portugal e da Jupiler Pro League (Bélgica).
A distância de investimentos faz dela a mais rica e interessante liga do mundo. Será?
Premier League competitiva, mas nem tanto
Times com muita capacidade de investimento são uma nota divertida para quem quer ingressar no mundo dos games. Para um fã hardcore, é legal poder escolher o Brighton, Aston Villa ou West Ham e reconhecer boa parte dos nomes do 11 inicial. Isso não significa que a liga seja competitiva de verdade.
Ao longo do tempo, a Premier League foi muito competente em vender ao mundo que existia um top-4 (Manchester United, Arsenal, Liverpool, Chelsea), que eventualmente virou top-5 (Manchester City), depois um top-6 (Tottenham) e hoje flerta com um top-7 (Newcastle). O incremento da lista é sempre acompanhado pela injeção de grana, somado a um algum grau de sucesso esportivo. Realisticamente, cada ano tem 2, no máximo 3, times que competem pelo título. As vagas para as competições continentais geralmente variam entre os outros componentes da lista, que sempre tem 1 ou 2, a depender do ano, de campanhas decepcionantes. A exceção de tudo, foi o Leicester 2015/16. E a razão para tanto não é exatamente desconhecida:
O desnível esportivo está intimamente ligado à disparidade de investimentos, como mostra a tabela acima. O atual campeão Manchester City gasta, apenas com o setor de meio-campo, mais do que toda a folha salarial prevista para a atual temporada do West Ham, oitavo clube que mais investe em pagamentos mensais aos seus atletas.
O Luton, por exemplo, investiu cerca de 3% do que o Chelsea gastou para a montagem do elenco. O topo da lista mostra clubes que gastam 9-10 vezes mais em salários que os clubes que menos investem. Essa, aliás, é uma das críticas de Steve Parish ao Fair Play Financeiro.
Fair Play Financeiro
Dos conceitos mais confusos das discussões rotineiras dos fãs de futebol, o Fair Play Financeiro foi bastante debatido entre Rodrigo Capelo e César Grafietti, no GloboEsporte, anos atrás. O que muitos torcedores entendem como “limitar receitas”, “contestar origem das receitas”, na realidade é um conjunto de práticas, estabelecido pelo mundo há muitas décadas, que tenta tornar as finanças dos clubes mais transparentes, encoraja os clubes a operarem dentro de suas capacidades econômicas.
Do ponto de vista prático, a informação mais relevante ao torcedor é compreender que clubes devem gastar um percentual máximo estabelecido de suas receitas com o futebol. Se o estabelecido for, por exemplo, de 70%, um clube cujas receitas batem 1 bilhão no ano, poderia gastar 700 milhões com pagamento de salários; já um clube de 200 milhões em receita, poderia gastar 140 mi em salários – apenas 20% do seu concorrente.
E esse é um dos problemas que a Premier League enfrenta, quando pensa em competitividade. Vejam o gráfico publicado na Huddle Up. referente à temporada 2021/22:
O Manchester City, campeão daquela temporada, gastou 354 milhões de euros em salários, cerca de 57% do seu faturamento. O valor é 3x maior que o gasto pelo Norwich City, rebaixado para a Championship, que comprometeu quase 90% das suas receitas com salários – investimento que, como se nota, não se justificou.
A questão é: 50% da receita do Manchester City é basicamente três vezes o faturamento completo do Burnley. E esse cenário deve se repetir em relação ao Luton Town, por exemplo. Por mais que traga benefícios, como credibilidade, transparência e impulsione boas ideias, o Fair Play Financeiro tem seus limites. O artigo 93 da UEFA – regulamento seguido pela PL – prevê que os gastos com futebol não ultrapassem 70% das receitas dos clubes. A implementação na Inglaterra está sendo gradual e deve chegar a esse patamar apenas na temporada 2025-26, quando, aí sim, será passível de punição.
Mas onde exatamente isso contribui para aumento da competitividade? Aí que está: não contribui. E, por isso, Steve Parish trouxe a ideia de implementação do salary cap, o teto salarial.
Teto Salarial: mecanismo para diminuir distâncias
O que é um teto salarial? Se você curte as ligas americanas, já deve ter se deparado com essa terminologia. A NBA, por exemplo, é um modelo de liga que adota o sistema e tem nele um dos seus principais mecanismos de construção de paridade esportiva. Lá funciona mais ou menos assim: ao fim de cada temporada, os donos de franquias se reúnem, distribuem os lucros atingidos na temporada e separam o percentual determinado no contrato com a associação de jogadores para determinar quanto cada equipe poderá gastar com salários na próxima temporada.
Achou confuso? É mais simples que parece. Vamos fazer um exercício aqui: supondo que o lucro da temporada tenha sido de 9 bilhões de dólares e que 50% são destinados aos jogadores. Isso significa que 4,5 bi serão divididos pelas 30 franquias para formalização do time para a próxima temporada. Nesse caso, cada time teria 150 milhões de dólares para gastar em salários – esse é o teto salarial para a temporada.
Para não criar disparidades absurdas entre os próprios atletas, a NBA determina que um jogador pode receber um percentual máximo dentro desse teto. Como não existe “compra” e “venda” de jogadores na NBA, o tamanho do salário de cada atleta é essencial para permitir trocas que nunca ultrapassem o valor estabelecido. Não importa, portanto, se Lebron James é 100 vezes melhor que um jogador recém draftado; ele não pode receber 100 vezes mais em salários. Outro fator que colabora pro sucesso da fórmula é que as franquias PRECISAM gastar um valor, de modo que a maior e menor folhas salariais estão dentro de uma margem pra lá de aceitável.
Voltando para a Premier League: a ideia de teto enfrentará uma série de dificuldades que já foram ultrapassadas nas ligas americanas. Por exemplo: já vimos que alguns times têm receitas 200, 300 milhões maior que outros clubes. Como ajustar essa diferença sem que os clubes mais ricos percam competitividade para além de suas fronteiras? – o Real Madrid ou o Bayern de Munique, por exemplo, não diminuirão seus investimentos na luta pelo título da Champions League.
Algumas ideias de como resolver esse impasse têm pipocado no imaginário dos analistas. Uma delas, prevê que o teto será um múltiplo do faturamento do clube pior ranqueado, de modo que a diferença nos gastos entre todos os times esteja sempre dentro de uma margem mais maleável. Na prática, ainda teríamos clubes gastando 3, 5 vezes mais em salários e possivelmente se mantendo à frente na disputa pelo título. Seria um cenário semelhante ao que vemos na Major League Baseball, por exemplo.
Outra opção, seria remodelar a distribuição de receitas coletivas – por exemplo, cotas televisivas -, de modo a aumentar a fatia dos times pior ranqueados. Essa ideia, no entanto, certamente sofreria resistência dos clubes mais ricos que, como já falamos, também tem pretensões para além das fronteiras britânicas.
Por fim, outra ideia que poderia encurtar distâncias, seria aumentar o protagonismo da homegrown rule, regra que determina que parte do elenco de cada time inglês seja composto por “jogadores formados em casa” – em essência, qualquer jogador com 21 anos ou menos que tenha passado pelo menos 3 anos nas categorias de base do clube é qualificado para tal posição. Nesse caso, seria necessário desenhar uma fórmula de número mínimo de atletas em campo formados no clube, não apenas na composição do elenco.
Conclusão
Operacionalizar uma ideia como essa é extremamente complexo. O aumento da competitividade interna é um objetivo nobre, mas terá pouco valor se comprometer todas as vantagens competitivas que a Liga conquistou nas últimas décadas.
Não há como controlar tudo. O “Brexit” mudou as condições da competição e não tem absolutamente nada a ver com os esportes. Uma guerra do outro lado do continente forçou a venda de um dos principais clubes da Liga, que até hoje não se reencontrou. Faz parte.
Mexer na estrutura de gastos da Premier League pode destruir o que de mais valioso foi alcançado pelos clubes: valor no imaginário popular. Enquanto o público geral do futebol acreditar que a Premier League é a melhor liga do mundo por ter 6, 7 times de elite, em condições de brigar por títulos, ela continuará no centro do mundo. Até hoje, mesmo que de forma lenta e gradual, a “classe média” da liga também tem aproveitado bem os benefícios de estar numa marca global.
O mais importante é que a discussão existe. Ela é uma sinalização, entre outras coisas, de que a liga deseja ser vanguarda em tudo. Que eles pensam num formato que seja mais atrativo, mesmo que ainda não seja viável.