Em outubro de 1998, a FIVB (Federação Internacional de Vôlei) deu um tiro de ousadia, aprovando a mudança na contagem de pontos e acabando com a “regra da vantagem”. Pra quem é mais jovem e nunca leu sobre a história do esporte, um brevíssimo resumo: até essa data, o vôlei era disputado em sets de 15 pontos, que só eram conquistados após a confirmação de um ponto do time que tivesse a vantagem – um paralelo com a vantagem num game de Tênis, quando o lance fica empatado em deuce/40 x 40.
Essa mudança foi um marco para o esporte, que passou a ser disputado em sets de 25 pontos corridos (os “rally points”). Ela foi aprovada de forma unânime pelas confederações nacionais. A proposta, trazida pelo mexicano Ruben Acosta, então presidente da FIVB, tinha um objetivo claro: reduzir o tempo das partidas e, assim, competir com outros esportes pelo espaço na TV, um desafio importante do esporte, dado que, assim como o tênis, não há duração pré-estabelecida para o jogo. Essa não foi a única mudança importante realizada no esporte, mas sem dúvida foi a mais impactante.
Os puristas podem ter lá suas dores, mas o objetivo foi alcançado. De lá pra cá, os indicadores do esporte melhoraram significativamente: mais audiência, mais praticantes, recorde de seguidores em redes sociais, consolidação em diversos mercados.
Esse causo me veio à lembrança esses dias, por conta de uma matéria publicada no The Athletic, que questiona se o tênis deve mudar algo, já que os jogos estão ficando (muito!) mais longos. É hora de mudar? Qual é a hora de mudar?
Esporte de nicho
Uma dura realidade para todo esporte que não seja o mais popular do mercado é lutar por um espaço na menor fatia do bolo. Aqui no Brasil (como em boa parte do mundo), o esporte mais popular é o futebol. Ponto. Os canais de televisão, redes sociais e rádios dedicam muito mais tempo a produzir conteúdo sobre esse esporte do que todos os demais. Brigar por tempo, espaço e atenção com o esporte mais popular é quase sempre uma derrota certa. Resta, então, disputar o posto de 2º lugar com os demais esportes.
E é aí que a margem para erro evapora: quem comanda o esporte precisa estar atento a todo tipo de oportunidade para garantir seu lugar no coração do público.
Mudar, no entanto, não é fácil. É necessário manter o equilíbrio entre “não desagradar sua base de fãs já estabelecida” e “ser atrativo para um novo público”. E tudo isso deve vir acompanhado de benefícios concretos. No exemplo do vôlei, a mudança de regra buscava aumento de receitas, em primeiro lugar. Calhou de ser um tiro certeiro, que tornou o esporte mais acessível ao grande público.
O basquete, por exemplo, não nasceu com arremessos de 3 pontos no seu livro de regras. Eles foram introduzido inicialmente pela ABA (uma liga já extinta que competia com a NBA pelo posto de principal liga de basquete dos EUA), e oficialmente na NBA apenas na temporada 79/80, e tinha alguns argumentos esportivos para tal: tornar o jogo mais versátil, permitir maior protagonismo aos jogadores mais baixos e aumentar pontuação geral do jogo. A liga precisou investir também na promoção do lance – há uma competição de 3 pontos na All Star Weekend, o fim de semana das estrelas – até que ele fosse naturalizado por jogadores e público. Hoje, é impossível imaginar o jogo sem os arremessos de 3 pontos.
Por fim, esportes de nicho ainda enfrentam a dificuldade de terem que explicar com clareza suas regras. Nem todo mundo é capaz de entender em apenas um jogo o que é um “fumble”, no futebol americano, um “goaltending” no basquete ou como funciona a pontuação no surfe. É fundamental que toda e qualquer mudança seja respaldada – seja pelo critério esportivo, econômico ou de entretenimento – para que não surte o efeito inverso.
Mudanças que deram o que falar
Se as mudanças são sinalizações para o crescimento do esporte, é justo pensar que bases de fãs diferentes se motivam por razões diferentes. O ecossistema de um esporte pode (e costuma) se desenvolver em um ambiente específico, ter suas próprias referências; quem é fã dele, se habitua a consumi-lo em um contexto específico.
A Fórmula 1, por exemplo, durante muito tempo foi a programação matinal de domingo das famílias brasileiras na Globo. Eventualmente, o esporte foi superado, chegando a 110 milhões de espectadores em 2016 – uma queda expressiva ao pico de 500 milhões quatro anos antes. Os direitos foram vendidos para a Liberty Media, por 8 bilhões de dólares, valor inferior ao valuation do business, feito em 2012. Os novos donos do produto resolveram mudar: era necessário investir e o plano passava por investir em marketing e imagem. A competição passou a ser encarada não apenas como um esporte de alto rendimento, mas um grande case de entretenimento. A mudança foi guiada pela produção de conteúdos – as docu-séries, sendo “Drive to Survive” a mais famosa delas -, disponíveis nas principais plataformas de streaming. A mudança se deu na conceituação do negócio: as corridas ainda estão ali e são o carro-chefe do negócio. Mas pra quem quer mergulhar mais fundo nesse universo e conhecer boas histórias, há caminhos para todos os gostos. E os números referendam a estratégia: a audiência média por corrida pulou de 500 mil em 2019, para 900 mil em 2021 e 1,4M em 2022 (números do mercado norte-americano). O contrato televisivo também saltou 20% na última negociação.
No futebol, a mudança mais importante de regra, feita em 2018, foi a implementação do VAR (árbitro assistente de vídeo), cujo lema é “mínima interferência, máximo benefício”, e a ideia, claro, era minimizar o volume de erros de arbitragem. Hoje, quase 5 anos após sua entrada, já temos uma amostragem grande o suficiente para avaliar os impactos da sua transformação, que se deu principalmente no campo de jogo. Há quem considere o VAR confuso e, em alguns casos, muito intervencionista. É inegável que ele teve um impacto cultural imenso. Mudou, por exemplo, a forma como alguns comemoram os gols, o tempo para confirmação de um evento central das partidas e até a minutagem adicionada ao fim de cada etapa. Além, claro, de ter reduzido drasticamente a margem de erros em gols por impedimento, por exemplo. Em 2018, o The Economist publicou um estudo que mostrava como o VAR reduziu em 80% erros capitais, com exceção dos pênaltis.
Outra mudança motivada pelos números e que tem trazido bons resultados para a liga aconteceu com a Major League Baseball. O esporte, que era o líder em audiência nos EUA até meados dos anos 70, viu sua posição ser ameaçada até pelo futebol (o soccer, lá) num mercado em que ainda tem traços de emergente. E parte da razão, mostram os números, é semelhante ao que aponta o início dessa matéria, tanto para o vôlei como para o tênis: o jogo está ficando muito longo. Em 1975, uma partida de baseball durava, em média, 2 horas e 25 minutos. Em 2021, esse número pulou para 3 horas e 10 minutos – um aumento de 31%. A liga decidiu mexer profundamente nas regras, incluindo um relógio de arremesso e bases maiores. Até o momento, os números são bem promissores: aumento do ritmo do jogo, 20% a mais de corridas nas bases, aumento de 10% no volume de rebatidas. O jogo tornou-se mais dinâmico e o público respondeu, batendo recorde de presença da última década. Todas essas mudanças foram testadas – com boas respostas – nas ligas inferiores do esporte, antes de chegar à MLB.
Nem tudo são flores
Mudanças nem sempre são bem recebidas – e esse foi o caso enfrentado pela CBV, no início de 2022, com o vôlei de praia. Depois de uma Olimpíada sem medalha, a confederação entendeu que precisava de mudanças para atrair talentos mais jovens, uma vez que as principais duplas do país já haviam ultrapassado os 30 anos. O argumento era justamente esse: remodelar o calendário com foco em resultados esportivos de curto e médio prazo. Na prática, a proposta não agradou aos atletas já atuantes no circuito e criou uma crise no esporte brasileiro. Atletas mais experientes se sentiram desprestigiados por não serem consultados sobre as mudanças propostas e um boicote virou realidade. Em se tratando de um esporte de nicho e ainda com uma competição interna de atletas junto ao vôlei de quadra – muito mais rico e estruturado atualmente -, o cenário ficou difícil. A proposta pode até ser boa em alguma medida, mas sem aprovação interna, tem pouco valor.
Outra mudança que foi bastante polêmica à época foram os “supermaiôs” no circuito da FINA. Durante algum tempo, foram permitidos e o mundo da natação viu recordes serem demolidos dia após dia. Na prática, os equipamentos eram tão desenvolvidos tecnologicamente, que perdemos a capacidade de analisar apenas a performance do atleta. Quando sua proibição foi efetivada, houve um longo debate dentro da comunidade, sobre se os recordes estabelecidos com as vestimentas deveriam ou não ser preservados e também uma dificuldade em estimar quais os tempos que deveriam ser usados como base para classificações de torneios mundiais e olímpicos. Uma mudança que teve seu momento, mas com efeitos colaterais não previstos.
Conclusão
A reflexão proposta pela matéria do The Athletic é extremamente válida e, se você colocar no Google “mudanças de regras (esporte x)”, verá que alterações – sejam no jogo em si, sejam em regulamento de competições – são mais comuns do que parece. Nem todas provocam transformações tão profundas quanto outras, mas há um entendimento de que é necessário mudar. Seja para tornar o esporte mais atrativo ao público, seja para torná-lo mais rentável.
No fim das contas, o mais importante é que o ecossistema de cada esporte possa participar, de alguma maneira, das propostas. Testar o novo modelo, entender se ele é bem aceito. Afinal, as mudanças devem buscar melhorias para o público.
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