No início de setembro, pudemos testemunhar um importante marco para a história do futebol feminino brasileiro. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou que, a partir de agora, mulheres e homens receberão as mesmas cotas de diária e premiação na seleção brasileira.
A novidade foi anunciada juntamente da apresentação de Aline Pellegrino como coordenadora de competições femininas e Duda Luizelli como coordenadora da seleção brasileira feminina. O presidente da entidade, Rogério Caboclo, destacou ainda:
“Aquilo que os homens terão na próxima Copa do Mundo será igual, proporcionalmente ao que a Fifa nos oferece, que as mulheres terão. Ou seja, não há mais diferença de gênero em relação à remuneração entre homens e mulheres. A CBF está tratando de forma equânime, absolutamente equânime, homens e mulheres”.
Rogério Caboclo
Com a presença de Duda e Aline mais a técnica atual da seleção, a sueca Pia Sundhage, pela primeira vez a CBF terá uma equipe de coordenação totalmente feminina. Mudanças históricas para a modalidade que foi proibida no Brasil por quase quatro décadas.
“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”, dizia a lei que esteve em vigor entre 1941 e 1979. Neste período, o futebol masculino venceu três Copas do Mundo e sediou uma, enquanto o feminino tinha sua prática proibida.
Em abril de 2019, exatos quarenta anos após a retomada da permissão do futebol feminino, a CBF passou a seguir a orientação da Conmebol, trazendo a obrigatoriedade de manutenção de times femininos para todos os clubes que disputam a série A do Campeonato Brasileiro. A partir daí, o futebol feminino começa a ganhar corpo.
Em julho, a CBF anunciou contratação de peso da treinadora Pia Sundhage, responsável pelas medalhas de ouro da seleção americana nas olimpíadas de 2008 e 2012, além do vice-campeonato na Copa do Mundo de 2011. Assim, mostra que, aos poucos, estamos começando a levar a sério em nosso país a estruturação de um projeto de valorização do futebol feminino.
Esses passos importantes são apenas o começo. Falar de futebol feminino no Brasil ainda é sinônimo de falar em resistência, descaso e superação.
Transmissão de jogos e premiação
O primeiro Campeonato Brasileiro Feminino, realizado oficialmente com esse nome, ocorreu em 1989. Como o futebol feminino era proibido até 1979 e só passou a ser regularizado em 1983, os campeonatos nacionais que se deram nas décadas de 80 e 90 não tinham muita organização, nem muitos registros. O Campeonato Brasileiro Feminino só passou a ocorrer de maneira estruturada, de fato, em 2013.
As diferenças entre os campeonatos feminino e masculino já se mostram desde a estruturação. Em vez dos 20 clubes já tradicionais nas primeiras divisões masculinas, a Série A1 do campeonato feminino conta com 16 equipes. Além disso, o torneio é divido em duas fases distintas: a fase de grupos e o “mata-mata”.
Com relação à transmissão, os contratos são fechados diretamente com a CBF e não com os clubes, como no campeonato masculino.
Os contratos firmado com Rede Globo para transmissão dos jogos da série A do Campeonato Brasileiro Masculino preveem pagamentos na ordem de R$ 600 milhões anuais pela transmissão das partidas, com 40% (R$ 240 milhões) de maneira igualitária entre os clubes (12 milhões para cada), 30% como premiação pela posição final no campeonato e outros 30% pelo número de jogos transmitidos. Até o ano passado, os times que eram rebaixados não participavam da divisão da premiação por posição, mas, por conta da pandemia e pelas crises financeiras que os clubes vêm enfrentando, em 2020 todos os clubes receberão uma cota de, pelo menos, R$ 4,62 milhões. Esses números mostram que, mesmo não contando com a cota recebida pela transmissão dos jogos, o menor valor a ser recebido por um time no Campeonato Brasileiro Masculino de 2020 é de exatamente R$ 16.620.000.
A rede de televisão Bandeirantes (Band) transmite uma partida por semana no Brasileiro Feminino, sempre aos domingos, às 14h. Já o Twitter exibe partidas nas segundas, às 20h. O restante dos jogos da A1 e da A2 são transmitidos na plataforma MyCujoo. Com essa dificuldade de patrocínio e transmissão para os times femininos, a CBF é quem custeia as premiações dos times. A premiação máxima que um time pode receber, no entanto, é R$ 185 mil.
Além das premiações, os times recebem uma ajuda de custo – em formato de reembolso – com o pagamento de R$ 5 mil aos clubes visitantes e R$ 10 mil aos donos da casa para os custos operacionais e pequenas despesas (como segurança, gandulas e ambulância). A entidade também arca com os custos de viagens, logística e hospedagem. No total, o valor chega a R$ 2,7 milhões para todas as partidas.
Número de torneios
O número de partidas jogadas por homens é muito maior que o das mulheres. O Brasileiro feminino tem apenas pouco mais de um terço do número de partidas disputadas no masculino: 134 a 380. Mas a discrepância não está somente na quantidade de partidas dentro do torneio, mas no número de torneios.
Na modalidade masculina, os clubes brasileiros podem disputar os seguintes campeonatos pelo futebol profissional: Libertadores, Sul-americana, Recopa Sul-americana, Brasileiros séries A, B C e D, Copa do Brasil, Supercopa do Brasil, Estaduais, Copa Verde, Copa Nordeste.
Já para os times femininos, há apenas a Libertadores, Brasileiro A1, Brasileiro A2 (a Copa do Brasil foi descontinuada para formulação da A2 e, por consequência, a Supercopa também) e Estaduais.
De 2007 a 2016, os campeonatos estaduais selecionaram clubes para a Copa do Brasil de Futebol Feminino. Em 2017, não houve Copa do Brasil e os estaduais passaram a selecionar os times participantes da recém criada 2ª divisão do Campeonato Brasileiro.
Formulação dos times
Dos 16 times que estavam na disputa da Série A1 feminina de 2019, 6 também disputavam a Séria A do Brasileiro masculino: Corinthians, Santos, Internacional, Flamengo, Athletico Paranaense e Avaí. Os três primeiros clubes já tinham projetos de futebol feminino consolidados há mais de uma temporada. Com a obrigação de se manter times femininos, os clubes que não tinham trabalhos formados usaram de alguns artifícios para montar suas equipes.
O time feminino do Flamengo, por exemplo, 2015 funciona através de uma parceria com a Marinha do Brasil. Já o Athletico-PR e o Avaí só conseguiram suas vagas por se fundirem a times que faziam parte da primeira divisão do campeonato – Foz Cataratas e Kindermann, respectivamente.
Outro ponto pertinente é a informalidade nos modelos de trabalho. Para os homens, desde 2018 é proibido que um atleta atue sem um registro profissional, ou seja, um vínculo empregatício. Contudo, no futebol feminino, a maior parte das jogadoras não têm sua carteira assinada pelos clubes, constando somente um contrato com vínculo não profissional.
Neste ano de 2020, a situação foi escancarada por um processo que uma jogadora – que não quis revelar seu nome – estava movendo contra o Fluminense, pedindo por ajuste de salário, direitos trabalhistas e danos morais por atraso de pagamentos, seguido por um outro caso em que duas jogadoras do Audax entraram com uma reclamação na CBF por informalidade e falta de repasse do auxílio emergencial enviado aos clubes pela entidade durante o isolamento causado pela pandemia.
Patrocínio
As equipes de futebol feminino vivem à sombra do futebol masculino no que diz respeito ao patrocínio de suas temporadas. O caminho que os clubes têm encontrado para a geração de receita para as equipes femininas é a extensão dos contratos já existentes com os times masculinos. É o caso do BS2 e do BMG, que passaram a expor sua marca como patrocinadores master na camisa da equipe feminina dos times que já patrocinavam – Flamengo e Corinthians, respectivamente. São raros os patrocínios feitos exclusivamente para o time feminino – como no Atlético-MG, que assinou contrato com a Unifemm.
O movimento no Brasil se iguala ao da Inglaterra. Os ingleses, que iniciaram há pouco o desenvolvimento do futebol feminino, ainda replicam, nas mulheres, os patrocínios dos homens. O Tottenham Hotspurs, por exemplo, tem seus times masculino e feminino patrocinados pela AIA Group. Já na Espanha, os clubes começaram a separar as equipes e seus departamentos comerciais. A principal inspiração foi a Uefa, que passou a vender separadamente as cotas para a Liga dos Campeões feminina e fechou rapidamente contratos com Visa e Nike, concorrentes diretas de Mastercard e Adidas, marcas que apoiam a competição masculina.
Ao falarmos sobre seleção brasileira, pode-se dizer que os olhos dos patrocinadores têm se direcionado de uma forma mais atenta para a modalidade feminina nos últimos anos. A Antártica, que patrocina as seleções brasileiras masculina e feminina de futebol há 18 anos através de seu produto Guaraná Antártica, percebeu em 2019 a necessidade de uma maior divulgação do futebol feminino e convocou outras marcas para apoiar a modalidade, movimento crescente muito interessante que trouxe esperanças de dias melhores.
Todavia, são investimentos ainda muito tímidos. As receitas patrocinadas da Copa do Mundo 2018 masculina chegaram a US$ 529 milhões. No mundial feminino de 2019, foram US$ 17 milhões de investimentos privados (apenas 3,28% do total de receitas patrocinadas do futebol masculino).
Audiência
A Copa do Mundo Feminina de 2019 foi um evento transformador. Pela primeira vez, emissoras de TV começaram a olhar para essa demanda do mercado e se comprometeram a não só transmitir, mas divulgar o torneio.
No Brasil, os canais fechados SporTV e Band Sports transmitiram o torneio em sua totalidade. Na TV aberta, a rede Globo e Band cobriram todos os jogos da seleção brasileira feminina. Tão ou mais importante que isso, foi acompanhar ao longo da programação muitas reportagens sobre as jogadoras, sobre edições anteriores e sobre os próprios jogos da Copa. As redes sociais também foram bastante utilizadas para trabalhar o engajamento do público e a promoção de debates antes e depois dos jogos.
A FIFA divulgou que, ao todo, 1,12 bilhão de pessoas assistiram à Copa, tanto pela internet quanto pela televisão. O estudo divulgado pela entidade ainda coloca os quatro jogos da seleção brasileira dentre as oito partidas com maior audiência ao redor do mundo.
De fato, mesmo crescendo recentemente, a audiência do futebol feminino ainda fica muito abaixo do masculino. Isso impacta na organização, profissionalização, valores dos contratos e tudo mais.
Existe, no entanto, um dilema do tipo “ovo ou galinha”. Será que existe um problema intrínseco de demanda ou as competições não têm o mesmo tipo de promoção? Os jogos não são transmitidos porque poucas pessoas assistem ou poucas pessoas assistem porque os jogos não são transmitidos? Quem veio primeiro?
Protestos que marcam
Toda desigualdade que cerca a estrutura do futebol feminino não é um problema exclusivamente brasileiro. Ao redor do mundo também é possível ver situações bem similares com relação a diferenças de salários, investimentos, patrocínios e oportunidades.
Os problemas vão muito além dos campos. As estruturas das federações, quadros de arbitragem e equipe administrativas e técnicas dos clubes também reforçam a desigualdade e a falta de mulheres ocupando os cargos. Um dado alarmante é que na Copa de 2019, das 24 seleções apenas 9 eram treinadas por mulheres (ou seja, apenas 37,5% das seleções).
Mesmo assim, o Brasil se destaca por ter uma estrutura tão predominantemente masculina, em um cenário que representa o caráter ainda machista do futebol e da sociedade como um todo.
- A comissão técnica da seleção brasileira que Vadão levou para a Copa da França existia apenas uma mulher. A auxiliar Beatriz Vaz foi chamada pela CBF para atender determinação da Fifa, que exige pelo menos uma representante feminina nas comissões.
- Só em 2018 houve o primeiro registro oficial de uma treinadora na CBF, Nilmara Alves, também a única a frente de uma equipe masculina no país na época.
- Arbitragem: o quadro atual da CBF conta com 17 árbitras. Oito delas possuem índice para apitar a primeira divisão do futebol brasileiro; homens são 42.
- Uma pesquisa realizada pelo jornal Extra revelou que apenas 1% do orçamento dos clubes vai para as equipes femininas.
Durante a Copa de 2019, muitas atletas de diferentes países fizeram protestos contra essa estrutura discrepante. Marta, por exemplo, utilizou chuteiras sem patrocínio nos jogos da seleção brasileira. Um protesto por ficar mais de um ano sem fechar parcerias por demandar um pagamento equivalente ao dos homens.
As craques norte-americanas Alex Morgan, Megan Rapinoe, juntamente com suas companheiras de seleção, reivindicaram na justiça o direto a uma equiparação salarial e protestam contra a falta de apoio. Já a atacante norueguesa Ada Hegerberg, uma das melhores jogadoras do mundo, recusou-se a participar da Copa de 2019 por não concordar em como as atletas são tratadas em seu país.
Um fio de esperança
Enquanto o futebol feminino for pensado por homens e sobrevivendo de reaproveitamentos do futebol masculino, dificilmente veremos de fato a mudança estrutural que é necessária. A presença feminina se faz extremamente necessária para a desconstrução de estereótipos, preconceitos e desigualdades no esporte.
Por isso, os últimos acontecimentos e decisões da CBF são tão importantes. O fato de termos, por exemplo, uma coordenação totalmente feminina na nossa seleção nacional, incluindo a contratação de uma treinadora multicampeã, representa uma grande vitória para todas as mulheres no esporte. Vitória que representa um fio de esperança.
Quem acompanha e batalha pela valorização do futebol feminino sabe que esse não é o fim, mas apenas o pontapé inicial para uma importante mudança na forma como enxergamos e valorizamos a modalidade que, assim como o futebol masculino, está repleta de craques apenas esperando uma oportunidade para serem vistas e valorizadas.
A obrigatoriedade de criação e manutenção de times femininos é fundamental, assim como a igualdade de premiações. Porém, estruturar um time feminino apenas como formalidade para evitar sanções previstas em regulamento não é suficiente.
A presença do futebol feminino é muito mais do que uma mera formalidade. É preciso dar a devida atenção e realizar investimentos concretos, pensando tanto no curto quanto no longo prazo.
A mídia tem o poder de gerar a própria demanda através da promoção dos produtos. Fica, então, a reflexão: se a modalidade recebesse investimentos, patrocínios, oportunidades e tempo de exposição mesmo antes de atrair grandes audiências, o nível técnico melhoraria, os campeonatos seriam mais organizados, grandes histórias seriam contadas e, assim, seria criado um ambiente fértil para que o interesse do público pudesse de fato aflorar.
A criação desse ambiente cabe a todos nós, homens e mulheres, apaixonados pela bola e pelas histórias que ela é capaz de contar.
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