Burnley tem novos – e inusitados – donos

Conheça quem são os novos donos do recém promovido time da Premier League e entenda o que há por trás desse movimento


Por Daniel Endebo

30 de agosto de 2023

Burnley tem novo - e inusitado - dono (Foto: Reprodução/Burnley)

O início do século XXI marcou uma nova era de “donos” no mundo do futebol. A história inaugural – e provavelmente mais famosa – desse momento foi a compra do Chelsea, em 2003, por parte do bilionário russo Roman Abramovich.

Não é como se não houvesse times com proprietários ricos até aquele momento. A entrada de Abramovich em cena, no entanto, acelerou qualquer processo que existisse à época. Os Blues passaram a ser protagonistas em todas as janelas de transferências por anos a fio, colecionaram títulos e viraram um favorito dos fãs de videogame. O Chelsea, que não conquistava o campeonato inglês desde a década de 50, se tornou um dos maiores campeões da Premier League e eventualmente conquistou títulos continentais, consolidando-se como um gigante do futebol mundial.

Os anos se passaram e vimos várias histórias parecidas, com mais ou menos sucesso, pelo caminho. O Portsmouth foi comprado e quebrou; os dias de luxo do Monaco duraram tanto quanto o casamento do ex-dono; o PSG se tornou o símbolo do futebol francês – e uma ponte do Qatar com o mundo do futebol. Valencia, Milan, Internazionale… foram muitos os clubes europeus a terem donos bilionários ao longo do século.

O Manchester City é um capítulo à parte: o clube foi comprado por um grupo dos Emirados Árabes Unidos, no fim dos anos 2000 / início dos anos 2010, e não tardou para revelar que, seus planos, na verdade, iam bem além das fronteiras do Reino Unido. O “City Group” virou um case de Multi-Club Ownership (MCO), uma nomenclatura usada hoje em dia para definir que um grupo de investidores detém participação em diversos clubes – incluindo o Bahia. São como carteiras de produtos, onde os produtos são clubes de futebol. É o mesmo modelo que a Red Bull adotou para seus clubes, espalhados pelo mundo, tendo o Bragantino como representante aqui no Brasil. Esse modelo é um pouco do que se vê em outros investidores que chegaram no Brasil através das SAF: Ronaldo, dono do Cruzeiro, também é majoritário no Real Valladolid; John Textor, do Botafogo, detém Crystal Palace, Lyon, entre outros. A 777, acionista do Vasco, possui um portfólio com vários clubes, incluindo o Genoa e o Hertha Berlin.

Ter gente muito rica envolvida em clubes de futebol deixou de ser exceção e virou regra. Bilionários que amam esporte ou simplesmente veem nele uma boa oportunidade de aumentar sua rede de influência e, claro, riqueza. Porém, só dinheiro não basta mais.

“Síndrome do Novo Dono”

A compra de um time de futebol ou uma franquia de uma liga norte-americana traz consigo reflexões e histórico de movimentações de mesma natureza. Nos anos 2000, o jornalista Bill Simmons cunhou o termo “New Owner Syndrome”, para se referir ao desejo compulsivo de novos donos de “dar sua cara ao novo brinquedo”. Isso implicava em mudança de elenco, de cultura, de estrutura. E não faltam exemplos dessa síndrome.

Logo antes da virada do século, o Dallas Mavericks, time da NBA, foi comprado por Mark Cuban, bilionário do ramo da tecnologia e conhecido dos fãs casuais por ser um dos “tubarões” no programa Shark Tank. À época, o time era uma das franquias mais disfuncionais e perdedoras da NBA. Cuban trouxe consigo novas ideias e visões de como transformar os Mavericks em um modelo desejado por atletas de outros times. Toda a estrutura da franquia foi reformulada, os melhores profissionais de análise e saúde foram contratados. A história mais famosa foi a reforma do vestiário de visitantes, que deixava impressionado quem passava pela cidade. Steve Ballmer, dono do Los Angeles Clippers e um dos homens fortes da Microsoft, mudou tudo no time menos conhecido da cidade quando adquiriu a franquia. O caso mais recente, na NBA, é de Matt Ishbia, homem de negócios do ramo hipotecário, que comprou o Phoenix Suns na última temporada e, semanas depois, anunciou um acordo para trazer Kevin Durant para a franquia.

No futebol, muitas vezes o clube não tem “uma cara” como dono, e sim um grupo por trás. Ainda assim, a “síndrome do novo dono” se faz presente. Um dos exemplos mais escancarados é – adivinhem só? – o Chelsea. Vinte anos após a compra de Roman Abramovich, os azuis de Londres foram novamente negociados (uma negociação forçada por conta de sanções do Reino Unido com a Rússia, país de origem do ex-dono) a um grupo liderado pelo americano Todd Boehly. Em pouco mais de 6 meses, o então campeão europeu viu seu elenco ser completamente repaginado, incluindo o comando técnico do clube. Hoje, 18 meses após a compra, o Chelsea ainda não obteve um único resultado esportivo expressivo; suas notícias são, quase sempre, sobre mercado de transferências.

A síndrome tem a ver com ego, claro, mas não só isso. Quase todos os donos de clubes e franquias não são “nativos” do esporte. Em geral, são homens e mulheres do mundo dos negócios, que querem importar processos, ideias e cultura para um ambiente que, mesmo quando se profissionalizou, sempre conviveu com o amadorismo. Não é de se surpreender, portanto, que certas entidades esportivas enveredem mais ou menos para uma determinada direção. Donos do mundo da tecnologia costumam ser os mais entusiasmados em abraçar novas ferramentas e soluções tecnológicas no dia-a-dia da sua nova aquisição. Caso famoso é o Wrexham, time da 4ª divisão inglesa, comprado pelo ator Ryan Reynolds, que fez a fama do clube explodir com um documentário de branded content divulgado na Netflix.

Mas como podemos conectar os desejos de um novo dono aos interesses dos torcedores?

“Clubes foram fundados para representar comunidades e fãs, não donos”

Esse é o título do excelente artigo publicado por Jonathan Wilson, colunista do The Guardian, e famoso no mundo todo pela autoria do livro “A Pirâmide Invertida”, espécie de enciclopédia tática no futebol. No texto, Wilson relembra a história do futebol inglês, desde os primórdios, em meados do século XIX, e comenta sobre o papel que o esporte tinha para a sociedade. Diversos times surgiram como representações de grupos de trabalho, frequentadores de um mesmo pub, pessoas com ideias de vida e mundo parecidos. Essa é uma das razões históricas pelas quais nunca mudamos de time: ele representa o que somos.

Resgatar a história do nosso clube é um processo muito importante para não deixa-la morrer. O Flamengo se tornou o time mais popular do Brasil nos anos 30, quando o então presidente José Padilha trouxe uma série de iniciativas para popularizar o clube, incluindo concurso em escolas, distribuição nas rádios e contratação de jogadores negros altamente populares à época, como Leônidas da Silva. O Vasco, por exemplo, se orgulha de um marco pouco conhecido do público geral, chamado de “Resposta Histórica”, onde o então presidente do clube, José Augusto Prestes, comunicava que o clube se recusaria a jogar o torneio do Rio sem seus jogadores negros – daí toda a simbologia sobre a luta do clube contra o racismo. E quem nunca ouviu falar da Democracia Corinthiana? Motivos para se orgulhar da própria história e se identificar como parte de algo maior, que nos represente, nunca faltou a nenhum clube.

Esse senso de pertencimento a uma comunidade só é possível de existir, defende Wilson, se o clube servir aos propósitos dos torcedores. Se ele serve exclusivamente a interesses de donos, sejam eles esportivos, econômicos ou políticos, o esporte perde seu propósito. O torcedor deixa de ser torcedor e vira cliente; os jogadores passam a ser exclusivamente contratados de um negócio; o estádio onde você cresceu vendo seu time, tem prazo de validade, até ser substituído por uma arena multiuso moderna.

Bom, há um meio do caminho. Não é necessário demonizar donos de clubes, como se eles próprios não tivessem interesses óbvios em ver o clube triunfar. O que se tornou mais comum é que as barreiras geográficas caíram. E é difícil manter noções de comunidade quando seu foco é conquistar públicos de outros países e culturas, completamente diferentes daqueles em torno dos quais um clube foi fundado e estabelecido. Mas isso é parte de uma batalha que os maiores clubes do mundo já travam desde o início do século – e que não vai parar tão cedo.

A internacionalização dos clubes começou com a projeção dos times europeus a mercados “periféricos” do futebol, como a China, os EUA e o sudeste asiático. O Manchester United fazia suas pré-temporadas por lá e abocanhou o coração de milhões de torcedores. A prática se tornou comum nos anos seguintes e o processo se acelerou profundamente ao longo dos anos seguintes, com a popularização de games, comercialização de direitos de transmissão e posteriormente com as redes sociais.

E onde o Burnley, um clube recém-promovido pra Premier League, entra nisso?

Um dono incomum

A história dos Clarets virou assunto no mundo dos negócios esportivos no início desse mês. O Burnley Football Club, comandado pelo ex-jogador Vincent Kompany, teve uma campanha histórica de promoção da Championship para a Premier League nesse ano. E para competir na liga nacional mais rica do mundo, o clube se abriu para possibilidades.

(Foto: Reprodução/Burnley)

Comprado pelo ALK Capital, grupo de investimento que assumiu o clube em dezembro de 2020, o Burnley teve fatias vendidas para os ex-jogadores da NFL Malcolm Jenkins e JJ Watt – e também sua esposa, a jogadora de futebol, Kealia Watt – nos anos seguintes. Os novos acionistas colocaram o clube em destaque, especialmente no mercado norte-americano, e o número de adeptos digitais cresceu. Esse, aliás, era o objetivo de ter novos acionistas estratégicos: conquistar um mercado gigante e cada vez mais envolvido com o esporte.

E o movimento mais recente dos donos foi incomum. Em agosto desse ano, o Burnley anunciou novos proprietários para seu plano ambicioso: os youtubers do canal Dude Perfect agora são parte dos Clarets. Sim, é isso mesmo que você leu: um grupo de youtubers americanos agora senta à mesa junto com bilionários e celebridades do mundo esportivo para tomar decisões sobre um clube de futebol da Inglaterra.

Por mais esquisito que soe a um fã casual, o plano não é aleatório, tampouco um golpe de marketing para dar destaque ao clube por algumas semanas. O grupo de conteúdo possui uma audiência superior a 91 milhões de fãs e seguidores, sendo 60 milhões apenas no YouTube – um dos maiores e mais importantes canais da plataforma nos EUA, com mais de 16 bilhões de visualizações de vídeo. Os conteúdos navegam entre o esporte e a comédia, um modelo muito comum nas redes. As redes, aliás, foram os canais de comunicação do grupo ao público, para avisar da novidade, que, no início, foi vista como pegadinha por parte do público.

O ponto central é: a base de seguidores do canal é concentrada principalmente na faixa etária de 5 a 16 anos. Essa é a principal motivação dos sócios ao abrir o clube para os youtubers: ter um parceiro estratégico na construção da base de novos torcedores. Ao mesmo tempo, “adquire” um portfólio de redes pronto para impulsionar um clube de menor porte em uma liga ultra competitiva, com clubes já muito populares no mundo. E, não menos importante, coloca no seu conselho diretor especialistas em um tipo de comunicação muito presente no mundo de hoje. A parceria vai dar certo? Difícil dizer hoje. É um risco que o Burnley precisava correr para competir no longo prazo contra os maiores clubes do mundo.

Quem serão os novos donos?

Quando nos deparamos com a notícia de que um outsider está entrando na gestão de um grupo, empresa ou mesmo país, é comum pensarmos “lá vem o aventureiro”. Acontece que os modelos se complexificaram e ter profissionais com diferentes competências não é mais uma aventura, é uma necessidade.

Os gurus da tecnologia já brotaram em diversos clubes e franquias, ex-atletas e profissionais do mercado esportivo vira e mexe estão entre os sócios das entidades. O Burnley pode ter sido o primeiro clube a oficializar especialistas em redes sociais como sócios, mas há muitos exemplos, inclusive no Brasil, de comunicadores que se envolvem diretamente com seus clubes do coração, a fim de acelerar o crescimento dos mesmos. Qual será a próxima camada?

Possivelmente, algum especialista de algo que não conhecemos direito. Há, entretanto, ainda muito espaço para aproximar especialistas de assuntos pouco explorados, como a construção-resgate do senso comunitário de uma torcida não mais local, mas sim global. Tal qual acontecia, quase 2 séculos atrás.