Foto: Justin Setterfield/Fifa
Que a final da primeiríssima Copa do Mundo de Clubes foi disputada por dois times endinheirados, até o torcedor desatento em relação aos bastidores sabe. De um lado, o Paris Saint-Germain, sustentado pelos petrodólares do Catar. Do outro, o Chelsea, até outro dia o brinquedo de luxo do magnata Roman Abramovich, vendido em 2022 para o também bilionário Todd Boehly e a investidora Clearlake Capital.
Como a história que se conta é a do vencedor, falemos do novo Chelsea. Já não há dúvida de que a mentalidade da nova administração, americana, é tão ousada quanto a do antecessor russo. Também não há margem para ingenuidade: seus movimentos denotam que há pouco apreço por fair play financeiro.
Desde que trocou de proprietário, os Blues têm dificuldade para fechar a conta operacional. Ou seja, eles gastam mais do que arrecadam. No ano fiscal encerrado em 30 de junho de 2024, o documento mais recente disponível, o EBITDA ficou negativo em 8 milhões de libras. No ano anterior, 31 milhões.
EBITDA é o resultado antes de juros, impostos, depreciações e amortizações. Quando ele fica abaixo de zero, aumenta a chance de fechar o ano com prejuízo. Então, a direção pôs a contabilidade para trabalhar.
No balanço de 2024, o Chelsea registrou a venda de seu time de futebol feminino para a Blueco 22, firma que pertence ao mesmo grupo empresarial. Por quanto? 200 milhões de libras. Nenhum time feminino no mundo vale tanto.
Como a negociação desse ativo foi registrada entre as receitas não operacionais, ela não afeta o cálculo do EBITDA, mas muda consideravelmente a última linha do balanço. Em vez de um prejuízo vermelho da cor do Arsenal, o Chelsea fechou o ano fiscal com lucro de 130 milhões de libras. Supostamente, sem ferir as regras de controle financeiro da Premier League ou o fair play financeiro da Uefa.
O Chelsea acumula dívida bruta próxima de 600 milhões de libras. Incluem-se nesta soma obrigações com fornecedores, encargos sociais e outros credores. O Sport Insider desconsiderou compromissos com partes relacionadas, pois elas não carregam taxas de juros, nem cobranças imediatas.
Ainda que se considere os quase 300 milhões de libras “a receber”, a empresa londrina está com 300 milhões descobertos. Mas se a conta operacional está negativa, e ainda há um monte de reforços comprados para o time, quem paga a fatura? Pois é, os donos, que injetam verba continuamente.
TEMPORADA | RECEITAS (em milhões de libras) | CUSTOS (em milhões de libras) | EBITDA (em milhões de libras) |
2019/2020 | 407 | -380 | 27 |
2020/2021 | 435 | -414 | 21 |
2021/2022 | 481 | -455 | 26 |
2022/2023 | 512 | -543 | -31 |
2023/2024 | 468 | -477 | -8 |
Não foi o primeiro drible
Vender o time feminino para empresa do próprio grupo, por um valor exorbitante, não foi a primeira maracutaia executada desde a compra do Chelsea. A sua nova administração já forçou inclusive a mudança de regras contratuais na Europa.
O clube londrino fez altíssimos investimentos desde a troca de comando. Coloquemos em um exemplo prático para entender o caso a partir deste ponto. O Chelsea comprou os direitos de Enzo Fernández em janeiro de 2023, por 107 milhões de libras, a maior transferência da história da Premier League. Contabilmente, o que o dirigente precisa fazer? Registrar o Enzo como um ativo intangível por esse valor.
A regra contábil determina que o valor desse jogador, enquanto intangível, precisa ser abatido ano a ano, conforme a duração do contrato. Essa amortização entra no balanço como uma despesa. Então, se o Enzo assinasse por três anos, o Chelsea teria que contabilizar quase 36 milhões de libras em custo por ano.
O truque dos novos donos, então, foi o seguinte. Em vez de assinar um contrato de três anos com o meia argentino, a diretoria deu a ele um contrato de oito anos e meio. Assim, a amortização de sua transferência recorde aconteceria em prazo mais alongado e, portanto, com parcelas muito mais suaves.
Ao dobrar o problema da amortização, o Chelsea pôde contratar muito mais atletas do que poderia, se não quisesse ferir as regras da Premier League e da Uefa.
A pegadinha ficou tão evidente e famosa, no mercado do futebol, que a confederação europeia teve de mudar os seus regulamentos: agora, contratos de jogadores podem ter no máximo cinco temporadas. Não mais sete, oito anos, como fizeram os blues.
Jogar no limite da contabilidade tem funcionado até aqui, vide a conquista da Copa do Mundo de Clubes com um elenco montado graças a essas artimanhas. Resta saber até que ponto as entidades reguladoras do futebol vão tolerar tanta criatividade.